INICIAÇÃO DE CALOIROS:

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 A DEFESA DA TESE DA PERFEIÇÃO E UTILIDADE DA RAÇA ASININA («PERFECTA UTILISQUE BURRICALIS RAÇA?»)

 

"O Rancho da Carqueja (Tentativa de romance histórico baseado nos acontecimentos académicos do século passado)", da autoria de António Francisco Barata (Góis, 1836 - Évora, 1910), que viveu em Coimbra de 1848 a 1869, exercendo a profissão de barbeiro na Rua de S. João, baseia-se nos distúrbios desencadeados, em 1720 e 1721, por um grupo de estudantes de Coimbra, que ficou conhecido por Rancho da Carqueja.

Inspirou-se Barata num manuscrito (com “má sintaxe, detestável gramática, nenhuma ortografia e medonha caligrafia”), coevo dos factos, que ele encontrara em 1863, e com base no qual começara a publicar um folhetim no «Comércio de Coimbra».

O interesse suscitado pela publicação e o incentivo de amigos, levaram-no a transformar o folhetim neste romance, com preciosas descrições da vida em Coimbra, seus monumentos e meandros, relações entre os estudantes, o clero e os futricas, e praxes académicas.

A ação começa com um ataque dos «carquejeiros» que desbaratou, na Rua das Fangas, o solene préstito que da Universidade seguia para Santa Cruz, comemorar o 1.º de dezembro de 1720.

O nome do bando relaciona-o Barata com a realização das suas reuniões magnas numa casa do Beco da Carqueja, fronteiro à Sé Velha: "Próximo do antigo e venerando templo de Nossa Senhora da Assunção - a Sé Velha - cujas paredes denegridas pelo hálito destruidor do tempo assistiram, segundo uns, à fundação da monarquia, sem terem maior antiguidade; e, segundo outros, ergueu-as ali a raça islamita, depois de 714 da nossa era; isto é, da invasão árabe, ainda hoje existe, e já existia em 1720 o Beco da Carqueja, que fica quase fronteiro ao templo, e que, bifurcando numa extremidade, vai dar à rua do Correio, ou de S. Cristóvão [atual Rua Joaquim António de Aguiar], e manda outro ramo para cima, para a rua da Ilha, Grilos, etc. Neste beco é que iremos encontrar agora os nossos estudantes...".

O nome do grupo não constituía homenagem a um facinoroso bandido de Viseu alcunhado de «Carqueja», como chegou a pensar Camilo Castelo Branco («Noites de insónia, oferecidas a quem não pode dormir», n.º 1, janeiro de 1874, Porto/Lisboa, Livraria Ernesto e Eugénio Chardron, págs. 94-100), que viria a reconhecer o seu lapso (obra citada, n.º 2, fevereiro de 1874, págs. 97-98).

A morte de um alfaiate, numa briga junto à ponte, terá determinado o envio por D. João V de uma força militar, que, em 20 de fevereiro de 1721, cercou Coimbra e capturou a maioria dos membros do grupo.

O seu chefe, Francisco Jorge Aires, de 22 anos, estudante canonista, filho do capitão-mor de Santa Maria da Feira, com o mesmo nome, foi condenado à morte e decapitado em Lisboa, em 20 de junho de 1722, sendo a cabeça remetida para Coimbra, onde ficou exposta, no topo de um pinheiro, frente à Igreja de S. Bartolomeu, até se consumir com o tempo.

A sentença de morte (que atribui a designação do grupo a terem queimado com carqueja a porta da casa de um João de Sequeira, onde entraram para o maltratarem) foi publicada em «O Conimbricense», de 22 e 26/12/1868.

O romance foi editado em Coimbra, pela Imprensa Literária, em 1864, e conheceu uma 2.ª edição em 1904, em Lisboa, pela Empresa da História de Portugal.

No capítulo III descreve-se uma das provas da iniciação dos caloiros: a "defesa das teses". No caso, o caloiro superou com tanto brilhantismo a defesa da resposta afirmativa à primeira tese - "Perfecta utilisque burricalis raça?" ("É perfeita e útil a raça asinina?") -, que foi dispensado da defesa da segunda tese: "Cur sini badalum abent?" ("Qual o motivo porque os sinos têm badalo?"). 

Mário Torres