MALVADO O DENTE QUE COME A SEMENTE

MALVADO O DENTE1

 

Aqui pela Gândara, chamamos carreira ao espaço onde, nas feiras e mercados, as pessoas ligadas a uma agricultura de subsistência, vão vender, lado a lado, os excedentes da sua produção. Mas nem sempre tudo o que ali vendem são excedentes já que, muitas vezes, levam também aquilo que evitam consumir em proveito próprio, sobretudo quando se trata das novidades do cedo, que sabem ter grande procura e bons preços. Ao abordar esta realidade, reconheço estar nela um dos acentos tónicos da nossa identidade que, ainda hoje, tão bem pode ser constatado. Bastará, para tal, que nos desloquemos à carreira de cada uma das nossas feiras e mercados e, parando, falemos e dialoguemos. Muitos dos rostos que ali encontramos ainda são de ontem, e quantos não continuam tapados com o lenço preto amarrado sobre o chapéu sem pena, como ainda manda o luto dessas mulheres. Mas também ali há estórias para ouvir e registar. Como a da tia Amélia. Meia dúzia de folhas de couve, talvez para caldo verde, atadas com uma junça, um pequeno molho de nabiças, umas laranjas dentro de um alguidar de plástico, dois ramos de salsa, umas poucas de favas mal vingadas dentro de um balde, e pouco mais que um punhado das chamadas ervilhas tortas, ou de quebrar, ou ervilhas sapatas, e que tão raras são hoje por estas terras, ao contrário do que antes acontecia, quando eram especialmente cultivadas para dar de presente às pessoas importantes da terra, nomeadamente ao médico, ao professor, ao padre, etc.


Pela descrição que faço do que a tia Amélia tinha para vender, facilmente se chega à conclusão da precariedade dos produtos. Tal não obstou que a tivesse questionado acerca das ervilhas, dirigindo a pergunta com o intuito de saber como tinha sido a produção, ao que ela logo respondeu ter sido fraca, por via do tempo muito chuvoso. Sabendo eu que a semente era cara e difícil de obter, perguntei-lhe onde a tinha adquirido, ao que ela me respondeu que nunca compra semente nenhuma. O que faz é aproveitá-las todos os anos. E foi quando me disse que não comeu aquele punhado de ervilhas que ali tinha porque sabia que elas lhe podiam valer dois ou três euros e passava bem sem elas. E disse-me ainda que o que faz com as sementes das ervilhas faz igualmente com as favas, com as batatas, com as couves, com os feijões, com os tomates… – Nunca como tudo o que colho. Doutra maneira, o que semeio na época seguinte? A tia Amélia, porém, foi mais longe e referiu-me que não basta guardar a semente que se colhe. Há que saber a altura em que tal deve ser feito, se está vingada e sadia e como e quando se deve secar, guardar e lançar de novo à terra.


E foi quando rematou: - Malvado o dente que come a semente!

António Castelo Branco