SEGUNDA HISTÓRIA NAS ILHAS

MANUELA JONES29

 

Na passada semana iniciei um primeiro texto, onde decidi contar-vos as minhas experiência vividas nas lindas ilhas que são tão nossas, Madeira e Açores.

Fiquei de tal forma fascinada, que decidi voltar novamente quatro anos mais tarde depois da primeira visita. Desta vez, foi a ilha Terceira e Graciosa. Na altura a ilha Terceira estava em festividades .

Nestas aventuras mágicas pelas ilhas dos Açores, cada passo foi uma dança entre a emoção e a descoberta. Desde o primeiro olhar sobre S. Miguel e Santa Maria quatro anos antes, até ao novo convite irresistível, para explorar desta vez, a Ilha Terceira e Graciosa. Cada ilha desvendou segredos que só um coração atento poderia captar.

As festas S. Joaninas na deslumbrante Terceira, foram um vendaval de cores e sons, onde cada rua competia para captar a atenção com sua própria beleza, pompa e circunstância. O mais belo" parque de diversões" das ilhas que conheci. Monumentos antigos sussurravam histórias ao vento, enquanto as famosas minas de Carvão ofereciam um desafio físico que culminava num merecido piquenique ao ar livre. Eu adoro piqueniques e as ilhas atraem a estas aventuras. Nada foi planeado. Mas depois de explorarmos as redondezas na expectativa de adquirir algo simples que nos aliviasse a fome, eis que de repente um aroma de carne assada aromatizada com vozes alegres pairava no ar, despertando os sentidos e convidando a saborear a generosidade da ilha.

Saí do carro e procurei saber se me podiam vender um frango de churrasco e pão.

Já me contentava para saciar a fome, mas se houvesse outra coisa naquela altura tudo era bem vindo.
Aqui no continente é muito frequente esse hábito, quando improvisamos sair e comer ao ar livre. Ou simplesmente, porque queremos ter um dia sem pensar em tachos e panelas ou o que vais fazer para comer.

Nós também precisamos de arejar e "sacudir a poeira" dos problemas do quotidiano.
Eu naquela altura estava numa fase da vida em que precisava parar e respirar fundo para tomar decisões importantes.

Naquele recinto havia risos, música, muita comida. Ao longe avistei toiros metidos em recintos com sólidas cercas.

Eu pensei que fosse uma espécie de feira, mas enganei- me.

Então lá fui perguntando:

- Boa tarde senhor, nós andamos à procura de um lugar para comprar um frango de churrasco ou algo que possamos comer.

- Podemos comprar aqui?

Em resposta à minha pergunta, um simpático senhor, respondeu-me sorrindo:

- Menina, aqui não se vende nada. Temos comida suficiente para vocês também. Venham daí e comam connosco!

Não estava habituada a esta hospitalidade. Normalmente por cá sempre disse o ditado que, quando chegam visitas à hora das refeições , muita gente esconde o prato na gaveta. É um termo muito antigo para retratar a tal gente que não partilha nada. Nem à mesa nem na vida. Eu chamo-lhes um termo usado muitas vezes pela minha rainha mãe :"Somiticos".

Eu gosto da partilha e nunca escondi nada de ninguém. Se alguém chega, entre risos e abraços, até com umas latas de atum se faz uma festa quando não há mais nada.

É preciso, apenas, boa vontade.

Ali não nos trataram como estranhos. Éramos todos iguais e partilhámos a mesma mesa e os mesmos sentimentos. Falamos das nossas experiências em sítios diferentes e brindámos com o vinho da ilha.

E foi assim, que entre risos partilhados e olhares curiosos, que nos vimos envoltos numa festa espontânea, onde os estranhos se tornaram amigos e a tradição se enraizou em nossos corações. Nunca mais nos separámos e deram- nos a conhecer os principais locais a visitar e as diferentes povoações.
Tudo estava em festa. As touradas à corda, na Praia da Vitória, com a mistura de coragem e tradição, fizeram- nos sentir vivos, enquanto o calor das sopas do Espírito Santo nos aqueciam a alma.
No dia da largada de toiros à corda, eu trepei para cima do estrado de um camião com a autorização do dono para me sentir em segurança. Não me aventurei nos cornos do touro nem nas suas proximidades. Enquanto assistia à festa, comia favas guisadas que me iam sendo presenteadas pela população local e bebia água.

Não sei se seria sede ou medo.

Aqui comemos amendoins ou tremoços, na Terceira, é tradição comer favas guisadas.
Estava calor, mas logo depois chovia e as gotas de água refrescavam- me.

As chuvas não durava muito tempo. Novamente o céu ficava limpo e o sol aquecia- nos o corpo e a alma. O clima nos Açores é mesmo assim.

Eu pensei cá com os meu botões, a comer favas e a beber água desta forma, o touro ainda me vai confundir com um cavalo, sobe o estrado e ainda levo uma valente cornada. E continuava a comer as favas e a beber água. Confiava nos homens que seguravam com fortes cordas, aqueles animais com força, firmeza e determinação.

Havia muitos que se aventuravam nos cornos do touro em brincadeiras derrapantes. O meu coração acelerava quando via alguém desafiar o animal já assustado com os barulhos.

Cada momento era uma sinfonia de sentimentos, onde a simplicidade de um pão partilhado no final do dia se tornava um gesto de amizade e gratidão. Foram quatro dias de festa.

Houve um episódio engraçado com o casal que me acompanhou. Depois de percorrermos vários quilómetros a pé em Angra do Heroísmo, fomos para o hotel onde ficamos hospedados para tomar um duche antes do jantar. Ora, eu tenho por hábito dizer que, se queres conhecer uma cidade ou algum local e explorar os seus segredos, tens que andar a pé. Por isso decidimos deixar o carro que alugámos no hotel a descansar. O Carlos e Liliana, meus companheiros de viagem, ficaram no quarto ao lado do meu. Tinha já passado uma hora e meia e estranhei a demora, bati à porta. A Liliana fez- me entrar, pedindo que não fizesse barulho. Estava então o Carlos a ressonar atravessado em cima da cama, em cuecas, meias e sapatos calçados. Não conseguiu aguentar até ao final do duche da esposa e " aterrou" num sono profundo e repousante.
Achei, e ainda hoje acho, que exagerei na dose e na "tareia" de quilómetros feitos com o Carlos e a esposa.

Para tranquilizar um pouco a minha consciência desculpo-me, ainda hoje, com a minha imensa curiosidade. O que fez com que nem me apercebesse que nos fartámos de caminhar. Nem sequer me lembrei que eles tinham mais doze anos e eu estava com a minha adrenalina ao máximo.

Outra desculpa que arranjei para mim é que a realidade é que nós, mulheres, tendemos a demorar sempre mais um bocadinho no monopólio da casa de banho.

Entre a auto culpa e os argumentos que arranjei para me desculpar, resolvi buscar algo rápido e simples para satisfazer a vontade de jantar e...no final já ninguém saiu naquela noite. Escusado dizer que o Carlos nem acordou para jantar. A caminhada cansou-nos tanto as pernas que estas já pediam descanso.

No outro dia, foi a risada geral.

Era tempo de apanhar outro avião rumo a mais uma aventura. Ao partir para a Graciosa, levamos connosco não apenas memórias vividas, mas também a certeza de que as ilhas dos Açores guardam tesouros que vão além do que os olhos podem ver. Novas aventuras nos aguardavam, mas o eco dos sorrisos e abraços açorianos permanecerá connosco para sempre. Na ilha Graciosa, as emoções continuaram a fluir de forma intensa e inesperada.

Após um voo atrasado devido ao vento, finalmente chegamos e fomos recebidos pelo caloroso Sr. José João no seu restaurante à beira-mar. O famoso restaurante que embora seja uma marisqueira, tem as conhecidas queijadas da Graciosa. A fome já se sentia e a sugestão das gigantes lapas grelhadas com molho de alho e manteiga fez- nos salivar de antecipação.

Mas o destino reservava-nos mais do que uma simples refeição.
O Sr. José João, com sua simpatia contagiante, apresentou-nos a sua especialidade. Uma caldeirada de peixe feita com amor e tradição com bastante cebola e alhos roxos. Se a memória não me falha tinha também o famoso peixe boca negra. O problema é que inicialmente, depois de devorarmos as gigantes e deliciosas lapas, já tínhamos encomendado duas cataplanas de peixe. Ora, a juntar a tudo isto, veio primeiro a famosa caldeirada não prevista no programa. Caldeirada essa que dava para matar a fome a dez e não a quatro pessoas tradicionalmente servida num enorme tacho que veio para a mesa a fumegar de aromas. Mandámos guardar as cataplanas para o almoço do dia seguinte. Impossível ingerir tanta comida.

A generosidade transbordava naquela mesa farta, onde a comida era mais do que alimento, era uma expressão de afeto e cuidado da parte do Sr. João. Por coincidência do destino, a filha na altura, estava a estudar terapias alternativas e medicina chinesa em Coimbra. Enquanto nos deliciávamos com o sabor único da caldeirada, o barulho das ondas ao longe embalava-nos numa serena melodia.

Foi então que o inesperado aconteceu quando decidimos tomar café na esplanada. Um homem humilde, mas de olhar gentil, aproximou-se de mim e olhou- me com insistência. Sorriu- me e para surpresa dos demais presentes, pediu-me que abrisse as minhas mãos. Eu obedeci entre a surpresa e a curiosidade. Senti um deslizar de pequenas conchinhas coloridas por entre os dedos e a sua frescura na palma das minhas mãos. Um gesto tão simples, mas que carregava consigo uma profundidade emocional indescritível. Fiquei sem palavras e as lágrimas bailavam. Lágrimas que eu evitei que deslizassem. Ás vezes choramos de alegria e emoção, não só de tristeza. Acho que foi um dos melhores presentes que já me deram na vida.

A história daquele homem, era emotiva e envolveu-nos num mundo de mistério e encantamento. Também se chamava João. Convidei-o para nos acompanhar no dia seguinte durante os nossos passeios pela ilha, desfrutando e repartindo com ele tudo o que vivemos durante a nossa permanência na Graciosa. Em troca contou-nos histórias incríveis e fez-nos conhecer locais completamente inesperados.

A lenda da Maria encantada, foi uma delas. A menina que desapareceu nas furnas, deixando à entrada as suas botas. Acredita que ainda viva ali e que esteja encantada. Diz que por vezes vem um cheirinho a comida do interior da furna e que será ela que está a cozinhar.

Fez- nos visitar o interior da ilha. A única praça de toiros que existe no mundo no meio de uma cratera. Numa caverna fez-nos descobrir um altar com umas mãos marcadas na pedra. Lá nos foi dizendo que eram as marcas das mãos de Maria Encantada para provar que ainda ali vive. Naquela simplicidade das suas palavras sobre a pequenina ilha branca, fomos transportados para um universo de magia e tradição.

Entre visitas no interior da terra e no exterior com vistas para o mar, depressa chegou o momento da partida dois dias depois.

Ao despedirmo-nos do João, ele presenteou - nos com mais conchinhas. Era a sua única fortuna e sua forma de expressar gratidão e carinho. Prometemos enviar-lhe uma caixa com roupas e sapatos, a juntar aos que o Carlos lhe deu antes de partirmos. Foi uma pequena forma de retribuir toda a partilha, generosidade e sabedoria que ele teve para connosco. Cumpriu- se o prometido e a caixa foi enviada.

Quase quinze anos se passaram desde esta aventura inesquecível, mas as memórias e as conchinhas guardadas com carinho são uma doce lembrança constante da beleza e da bondade que encontramos também, na ilha Graciosa e na Terceira.

Sei que um dia vou voltar.

Não sei se o João estará lá, com mais histórias para me contar e mais conchinhas para me presentear. Desta vez, se isso vier a acontecer num futuro, sei que não serei acompanhada pelos mesmos amigos. Presto no entanto aqui, uma profunda homenagem ao Carlos, que partiu cedo demais há cerca dois meses.

Muita coragem à Liliana que durante quarenta anos viveu com ele um casamento feliz cheio de amor onde os seus "frutos" eram o seu orgulho maior. Ficam as doces recordações dos risos que se viveram, e das memórias que não quero apagar.
Depois destas lindas ilhas, decidi ir mais longe em 2014.

Dessa vez escolhi África.Para visitar uma ilha que foi em tempos uma colónia portuguesa ou “província ultramarina” como insistia Salazar.

Brevemente irei escrever também sobre essa viagem e desse povo magnifico da terra do "leve, leve".

Manuela Jones