Natal em terras do islão

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 | 14 Jan 2019 | Entre MargensÚltimas

O Natal foi celebrado há poucos dias nas igrejas orientais, por causa das diferenças de calendário [este ano, o dia 25 de Dezembro do calendário juliano coincidiu com o dia 7 de Janeiro do calendário gregoriano, usado no Ocidente]… Uma pergunta que me fazem de vez em quando, por ser cristão originário do Egipto (quer dizer: copta), é: “Como é que se celebra o Natal num país muçulmano?”.

Ora, isto merece de entrada um esclarecimento acerca do último sentido da celebração natalícia. Se é o frenesim comercial e decorativo que se conhece nos países ditos cristãos, ou ainda as encenações dos pais natais, das árvores de Natal e da panóplia de trocas de prendas ou de boas festas, etc.? Ou a celebração litúrgica e interior, incluindo o tempo preparador do Advento?

É que, em termos estritamente cristãos, parece-me existir uma grande analogia entre o Ocidente consumista e relativamente “pagão” e o Médio Oriente maioritariamente muçulmano. Em ambos os mundos se vive o verdadeiro cristianismo em contexto “minoritário”! Por cá e por lá, o que se comemora não será o nascimento do Menino que veio mudar o mundo e acordar as consciências… Afinal, a celebração “religiosa” não deveria implicar, antes de tudo, a contemplação colectiva e individual deste “mistério-sacramento” e a consequente meditação sobre a mudança dos parâmetros da nossas vidas?

Para além das celebrações enquanto tais, o povo cristão deve saber viver os seus ritos e a sua fé, a sua visão do mundo, como testemunho duma realidade de facto plasmada nas entranhas da terra e funda no coração dos humanos, se bem que de modo não aparente.

Como é que vejo e posso, então, viver a mensagem natalícia num meio muçulmano, onde impera uma imagem de Deus essencialmente transcendente e omnipotente? Onde a crença num Filho de Deus feito homem soa a politeísmo e blasfémia, ambos passíveis de retaliação violenta?

Em primeiro lugar, há que considerar que, no livro sagrado dos muçulmanos, “Jesus filho de Maria” é tido como um profeta muito particular. Ele é na verdade “a Sua palavra”, “um espírito dEle” que foi “soprado” no seio da virgem (sic) Maria, ela própria descendente da família do profeta Umrán. Isa ’bnu Máryam fez milagres inacreditáveis desde a tenra infância! Mas, sobretudo, ele e a sua mãe foram as únicas criaturas que foram geradas sem pecado original, sem serem “tocadas por Iblís (o Diabo)”…

Ora bem, o Natal é simplesmente a comemoração do nascimento desse profeta “misterioso”! Celebra-se tal como os muçulmanos costumam celebrar o nascimento do profeta Muhâmad na festa do Múlid al-Nábi (prática inaugurada apenas no século IX, por inspiração da prática cristã então vigente). Contudo, para os cristãos, não se trata apenas de celebrar o aniversário do seu “profeta”. Celebra-se o mistério do Deus que se fez homem, assumindo ser pequeno, fraco, frágil e vulnerável (perseguido por Herodes…), convidando à ternura materna e à compaixão.

Isso deveria tocar todo o muçulmano, pois ele invoca continuamente Deus como “o todo clemente e misericordioso”: al-rahmán al-rahím – palavras que têm origem no termo rahm, o útero materno, a matriz!

Afinal, com o Natal cristão, convida-se a celebrar o mistério do amor que liga o Deus Criador − para todos os efeitos, transcendente e omnipotente − à sua humilde e “infanta” criatura. Convida-se a rejeitar toda a vanglória e o orgulho, a prepotência e a violência. A desenvolver a bondade e a solidariedade, a confiança na misericórdia de Deus (outro sentido de islám/taslím, ‘submissão e entrega indefesa’…) para ultrapassar as nossas fragilidades e limites, a nós todos e todas.

Adel Sidarus é professor jubilado da Universidade de Évora e colaborador da Universidade Católica Portuguesa