MARCAS DA PORTUGALIDADE. ORATÓRIOS LUSO-JAPONESES DE SUSPENDER; OS SAIGAN.
A primeira pintura de temática religiosa cristã vista pelos japoneses deve ter sido uma que Francisco Xavier levou, quando da sua viagem ao Japão. Conhece-se o episódio da recepção em Kagoshima, onde, em vista de uma imagem de Nossa Senhora que ele terá mostrado, os habitantes locais se ajoelharam. Ao que parece, a mãe do daimio local mandou logo fazer uma igual aos artistas da terra, mas estes não o conseguiram, por não terem material adequado. Era por certo uma pintura a óleo sobre tela ou sobre cobre, pois essas eram as mais fáceis de transportar.
Temos notícias de pinturas destas em quase todas as povoações onde chegaram os padres da Companhia de Jesus, nas igrejas, nos palácios dos daimios, e mesmo em oratórios de gente menos abonada. O padre Fernão Guerreiro refere-se a um retrato de Santo Inácio de Loyola e a uma representação do Ecce Homo. Estão documentadas as que levou o padre Melchior Nunes Barreto, ido de Goa em 1554. Anotámos cinco retábulos, dois alusivos a Nossa Senhora, e três à Paixão de Jesus Cristo, um dos quais feito em Portugal pelo irmão Manuel Álvares. Nessa mesma altura, foram também seis panos pintados com vários aspectos alusivos à Ressurreição de Cristo. Muitas destas pinturas foram aproveitadas para emoldurar, para servirem em oratórios de suspender. Estes oratórios em forma de capela, com pinturas no interior, os seigan, são das obras mais interessantes da arte namban. São compostos por pequenos quadros rectangulares, pintados a óleo sobre cobre, com dimensões próximas de 50 por 40 cm, colocados dentro de uma armação com meias portas finamente decoradas a maqui-é de ouro e prata, com embutidos de madrepérola sobre o uruxi negro. São completados por frontões, em geral de forma tringular, e frequentemente ostentando a Cruz, a pomba do Espírito Santo ou o símbolo da Companhia de Jesus. Alguns têm uma estrutura um pouco mais complexa, como o de uma colecção privada japonesa, com uma base arquitectural, ou o da Fundação Ricardo Espirito Santo de Lisboa, com um frontão mistilíneo. Além destes oratórios há outros, nomeadamente no Museu Guimet de Paris, na Art Gallery de Wolverhampton, no Museu de Arte Popular de Munique, no Museu Municipal de Nagoya, em vários museus e colecções de Tokyo e de outras cidades japonesas, na Misericórdia do Sardoal e de outras colecções privadas, adquiridas sobretudo em leilões internacionais.
Um dos problemas não esclarecidos é o da origem das pinturas. Quando aos retábulos propriamente ditos, não há qualquer dúvida que são de factura japonesa, e datam do período de maior esplendor da arte momoyama. Os principais autores que se têm dedicado a estas matérias admitiram que as pinturas foram executadas no Japão. Parece mais provável que tenham sido aproveitados cobres enviados de Portugal, e que os padres da Companhia de Jesus industriaram os marceneiros e laquistas de Kyoto e de outros centros a fazer as estruturas dos oratórios, à medida de cada uma das pinturas disponíveis.
O carácter italianizante da generalidade destas pinturas foi já muito judiciosa e claramente notado mas, considerando apenas como exemplos as pinturas de Lisboa e Sardoal, de Utrecht e do Peabody Essex Museum, porque têm todas representada a Virgem com o Menino, constata-se que estão atestadas outras tantas mãos diferentes. Assim a possibilidade de serem todos obra de Giovanni Nicollo cai por terra. O cobre do seigan de uma colecção privada de Lisboa é claramente português, do primeiro maneirismo, feito por um pintor influenciado por Luís de Morales, e a lindíssima Santíssima Trindade rodeada por Anjos do Departamento de Assuntos Culturais de Tokyo é de um bom pintor tenebrista peninsular, quase de certeza sevilhano. Ao contrário, a pintura que evoca o Santíssimo Sacramento do Museu Guimet, da que representa São José com o Menino, hoje numa colecção portuguesa, e o da Museu Municipal de Tsukumi da Prefeitura de Oita têm as características formais das pinturas averiguadamente feitas por japoneses. Mais uma variante é a pintura da Senhora com o Menino, em que o tocado da Virgem parece saído de uma tábua de Rogier van der Weyden, mas que é obviamente muito posterior, do fim do século XVI, e que actualmente integra as colecções do Peabody Essex Museum de Salem.
Consideramos as pinturas destes oratórios, salvo as três acima referidas, obras de europeias -- italianas, portuguesas, flamengas e espanholas – executadas por homens imbuídos no espírito da Maniera, mas de segundo plano. São bons trabalhos de oficina, mas não foram pintados por nenhum grande mestre. Não descartamos ainda assim a possibilidade de Giovanni Nicollo ter pintado alguns, mas não podemos, por falta de padrão, de base de comparação, atribuir-lhe qualquer deles.
Voltando um pouco atrás, relembremos alguns seigans conservados. O da Santa Casa da Misericórdia do Sardoal apresenta apenas Nossa Senhora com o Menino Jesus ao colo, sobre um fundo escuro. As figuras são alongadas, de claro recorte maneirista, cheios de idealismo e doçura. Nossa Senhora é jovem, de olhar baixo, quase pudico, abraçando amavelmente o Filho. Este é um garotinho gentil, de rosto vivo e cabelito encaracolado que olha para fora do quadro, na direcção do observador. Ambos têm resplendores dourados e galões a debruar as vestes, também a ouro. As dimensões do oratório são de 47 cm de altura por 35 cm de largura. É decorado a maqui-é de ouro e prata, com embutidos de madrepérola recortada sobre o uruxi negro. Na decoração exterior e interior do oratório encontram-se elementos da flora nipónica, como citrinos, cerejeira brava, acer e cameleira, usados comummente na ornamentação namban. No frontão triangular vê-se o emblema da Companhia de Jesus. Uma inscrição que se pode lêr diz o seguinte: Esta Sra da Espa cõ seu oratorio mandou Gar de Souza Lacerda pôr neste altar por estar sepultado ao pé delle e a pôs sua Mer D. Hyeronima de parada em 7 de 7 bro de 1670. Temos assim documentada a proveniência do oratório, que nos finais do século XVII já estava no Sardoal.
O oratório que pertence à Fundação Ricardo Espírito Santo de Lisboa é ligeiramente maior do que o anterior, com 50 cm de altura por 33 cm de largura, e tem uma representação mais complexa. Vê-se Senhora com o Menino ao colo, tendo por trás São José, e ao lado São João Baptista. Como fundo tem uma paisagem fantasiada com montanhas e um céu nebuloso. As cores são ácidas e os corpos muito alongados, particularmente os infantis, aliás também muito musculados, verdadeiros “Meninos Jesus-Hércules” típicos da corrente romanista de meados de Quinhentos. É uma pintura estereotipada e de cariz artificinal. Do ponto de vista decorativo, o móvel segue de perto o anterior, mas o frontão é mistilíneo, com três curvas abatidas.
O oratório do Rijksmuseum Het Catharineconvent de Utrecht tem somente com 39 cm de altura por 28 cm de largura; o móvel é quase igual do ponto de vista decorativo ao do Sardoal. As diferenças residem no motivo no interior do frontão, neste é a Pomba do Espírito Santo, e no facto deste ter base que permite colocá-lo sobre uma mesa ou altar. A pintura é muito delicada, com a Virgem a puxar para si o Menino, pronta para O amamentar, enquanto Ele já mete a mãozita por entre as vestes de Nossa Senhora, para lhe alcançar o seio. Os resplendores são menos densos o que favorece a apreciação dos rostos, muito bem desenhados e muito bem executados.
O já citado oratório de suspender de Tokyo, com 40 cm por 31 cm, é o que tem a estrutura mais simples, ou foi mutilado, pois não tem base nem frontão. A decoração a ouro sobre o uruxi negro é aqui valorizada por incrustação de madrepérola, reproduzindo magníficamente sarmentos, parras e cachos de uvas. Como antes se disse, a pintura é tenebrista, com um fundo muito escuro donde sobressai a Santíssima Trindade com Deus Pai, o Filho e o Espírito Santo sobre o Globo. São figuras alongadas, esguias, com um bom jogo de cores das vestes, azul, branco e encarnado, que com os querubins esvoaçantes formam uma composição circular.
O seigan da colecção do Museu Guimet tem uma extraordinária decoração, com pássaros de longas e elegantes caudas a sair da folhagem dourada de cameleiras. A estrutura do móvel, pelo contrário, é a comum, sem base e com o frontão triangular onde avulta uma cruz incrustada num círculo. A pintura, também a óleo sobre cobre, é fraca, quase ingénua, sem profundidade nem perspectiva, pelo que podemos aceitar que tenha sido feita no Japão. Há simetria, mas não um ponto de fuga. A custódia de balaústres dourada e com um grande pé ocupa o terço superior do campo, deslocando para aí o olhar do observador; estamos em presença de um artista que não seguia as normas das oficinas europeias. Esta custódia é sustentada por dois anjos esvoaçantes que a vão pousar sobre uma mesa de altar com um frontal de seda amarela. Aos lados, ajoelhadas, estão Santa Catarina e uma Santa dominicana, cujos rostos são pouco ortodoxos, oblongos, de olhos rasgados, etc. Pode ser obra de um dos tais artistas japoneses que aprenderam nos seminários da Companhia de Jesus.
Pedro Dias