MARCAS DA PORTUGALIDADE: A FORTALEZA DE MAZAGÃO EM MARROCOS
Mazagão está situada a pouca distância da foz do rio de Morbeia e, por conseguinte, de Azamor. Chama-se hoje em dia El-Jadida. Em 1486, ficou como protectorado da Coroa Portuguesa e, em 1502, Celeme ben Omar pediu mesmo a D. Manuel I para levantar uma fortaleza para proteger os seus aliados. Porém, após graves desentendimentos com o chefe local Muley Zião, a conquista efectiva foi levada a Cabo pelo duque de Bragança D. Jaime, em 1513, e a fortificação subsequente foi erguida por Francisco Danzilho com a colaboração activa do primeiro capitão da praça Martim Afonso de Melo. Até 1529 o seu governo ficou associado ao de Azamor, e só a partir de então se tornou autónomo. Em 1541, com a presença de Luís de Loureiro no comando das operações militares foi construída a fortaleza mais importante de quantas fizemos em África, de tal modo que resistiu a todos os ataques, sendo apenas abandonada em 1769.
A construção de um primeiro castelo em Mazagão foi considerada uma prioridade pela Corte, o que ressalta da carta enviada a D. Manuel I por Rui Barreto logo em 21 de Fevereiro de 1514, mas é da construção definitiva, a do tempo de D. João III, que nos vamos ocupar. O que os irmãos Diogo e Francisco de Arruda então fizeram mantém-se, posto que sob uma espessa camada de reboco recente. Quando das grandes obras projectadas por Benedito de Ravena, depois de 1541, a primitiva fortaleza de planta quadrangular foi aproveitada para diversos fins. Na praça de armas João de Castilho construiu a fantástica cisterna abobadada que ainda se pode ver.
A praça de Mazagão esteve para ser abandonada, como outras, mas questões ocasionais levaram a que quando a decisão foi tomada já era tarde demais e houve que inverter a política, fazendo deste lugar o único a conservar da costa oeste do Magrebe.
Na Corte de D. João III a decisão foi muito bem pensada e os prós e os contras pesados. Temos prova clara de que, em 1541, Benedito de Ravena chegou a Mazagão acompanhado de Miguel de Arruda, idos de Ceuta, e que aí mesmo traçou a planta para a nova e moderna fortaleza.
A 8 de Agosto de 1542, João de Castilho pediu a D. João III que enviasse 150 ou 200 servidores para substituir pessoal que, entretanto ficara indisponível, pois ele necessitava urgentemente deles para os trabalhos de desbravamento das terras. Esta primeira tarefa deveria demorar até Outubro, sendo preciso dispensar nessa ocasião cerca de 1.500 homens, inúteis à defesa, pois no Inverno só eram necessários 50 pedreiros, outros tantos cabouqueiros e 300 serventes.
O evoluir das obras pode ser seguido através de vários documentos. Em Agosto, no dia 28, por outra missiva, Luís de Loureiro dava graças a Deus por a obra estar a ponto de se fazerem as portas, a começar pela principal da vila com os seus 18 palmos de altura e 18 de largura, e também a porta falsa ou do baluarte, com 13 palmos de alto por 10 palmos de largo, defendida com bombardeiras que foram abertas na base.
As três cartas que João de Castilho escreveu são fundamentais, para o entendimento da evolução das obras e da organização de uma empreitada tão complexa. A primeira é de 15 de Dezembro de 1541 e, nela, testemunha que as obras eram co-dirigidas por ele e por João Ribeiro, e que o entendimento nem sempre foi fácil, quer por razões técnicas quer administrativas. É também importante a carta de Luís de Loureiro de 15 de Dezembro de 1542, na qual diz que os muros já estavam cerrados, mas que havia ainda muito material fora deles. Entretanto o vedor das obras passou a ser Manuel Afonso que substituiu o tão citado João Ribeiro . Quando João de Castilho regressou a Portugal ficaram em Mazagão outros mestres de pedraria e seus subordinados a ocupar-se dos acabamentos dos baluartes e das reparações que eram necessárias. Um deles foi João Gonçalves, ao qual sucedeu em 1545 Jorge Dias.
A obra de fortificação planeada por Benedito de Ravena e construída sob as ordens de João de Castilho revelou-se excepcional, até porque foi pensada para responder às mais avançadas técnicas de assédio e também numa posição e com dispositivos que permitissem um contacto permanente com o mar e as armadas de socorro ou mantimentos. É evidente que o italiano, como os melhores engenheiros portugueses do tempo, sabia das possibilidades de evolução da balística e por isso fez uma obra para o futuro e não apenas para fazer face aos perigos imediatos.
Mazagão ficou uma fortaleza a que poderíamos chamar de planície mas com a vantagem de ter três lados defendidos pelo mar, no todo ou em parte, onde podia haver uma armada permanente, e por um fosso imponente, numa área plana que não dava margem a ataques de surpresa. Na maré alta sobretudo o acesso aos muros era praticamente impossível e a artilharia de longe não lhe fazia dano. É evidente que as bombas incendiárias e granadas atiradas para o interior da vila tinham um efeito devastador, mas a isso tentou opor-se a vila com um complexo sistema de revelins e tranqueiras visível nas espécies iconográficas seiscentistas e setecentistas.
A Descrição da Fortaleza de Mazagão escrita por D. Jorge de Mascarenhas e datada de 1616 confirma o essencial da anterior. Entre outras coisas o autor destacou o circuito das tranqueiras que Iam de mar a mar e que somavam um total de 8.096 braças. Se continuarmos a seguir as suas palavras, lembraremos que a fortaleza de Mazagão estava fundada sobre pedra viva, dentro do mar; tinha uma cava com 150 palmos de largo que, na maré cheia tinha mais 3 braças de água de altura. Na sua comporta cabiam navios de 50 e 60 toneladas e galeotas e podiam estar dentro dela mais de oitenta navios deste porte.
Pela análise de todas as cartas e mapas pode concluir-se que em relação ao que hoje se pode ver em Mazagão, apenas desapareceu o conjunto das tranqueiras, o molhe da porta da ribeira e o baluarte de terra, o que defendia a porta principal, duas faces do fosso e os revelins exteriores. Tudo o resto está inalterado e mesmo a malha urbana sofreu poucas modificações, notando-se como maior diferença o desaparecimento das igrejas e capelas, à excepção de duas, como veremos adiante.
Os baluartes são todos diferentes, o seu desenho não é regular como os teóricos da arquitectura militar renascentista propunham, mas estão adaptados às funções que aqui tinham e também conformados à estrutura do solo em que assentavam que não é homogénea. O desaparecido baluarte da porta de terra era muito mais pequeno do que os restantes, fazendo-se a entrada em cotovelo como era hábito desde a Idade Média nas torres de tradição muçulmana. Os baluartes estão ligados por um largo adarve a que se tem acesso do interior da praça por amplas rampas, mas todos eles podiam ser fechados em caso de entrada do inimigo dentro da vila, tornando-se verdadeiros castelos autónomos. No século XVII havia ainda três escadas: uma onde quebra a cortina norte; a escada da calheta por onde subiam os cavalos; e a terceira junto à porta do campo para acesso aos bois usados na tracção dos carros com os mantimentos e munições. Para além deste dispositivo havia uma rua ampla a toda a volta da praça, que completava este sistema de circulação, mas não é de menor importância a possibilidade de acesso directo entre as portas de terra e do mar através de uma via larga e estruturante sem qualquer entrave, a chamada rua da Carreira.
Não se pode esquecer a extraordinária obra de arquitectura que é a cisterna de Mazagão, trabalho que talvez não estivesse nos planos dos engenheiros da Junta de 1541, mas que João de Castilho fez logo de seguida aproveitando o espaço da praça de armas do velho castelo manuelino. Tem a planta quadrangular com 36 metros de lado e é toda de cantaria, com vinte e cinco pilares em que assentam arcos de volta perfeita que suportam a abóbada, apenas com um orifício, no meio. A água chegava e ainda chega ao interior através de canalizações subterrâneas que conduziam nascentes e águas pluviais e também através dessa abertura superior onde na época de chuva era feito uma espécie de funil com lonas.
Não podemos deixar de referir o espanto que as obras provocava a quem a via tal como hoje. Em 1629, Gonçalo Coutinho que governou a praça nesse tempo dizia num seu relatório que se a cisterna tivesse sido feita no estrangeiro toda a gente falaria dela e não seria menos famosa do que os obeliscos de Roma ou do que as termas de Diocleciano. E continuava afirmando que ela estava para Mazagão como o Nilo estava para o Egipto.
Conservam-se hoje duas construções de cariz religioso em Mazagão: a igreja de Nossa Senhora da Assunção e a igreja de São Sebastião no alto do baluarte com o mesmo nome, esta com o perfil dado por reformas setecentistas e mesmo posteriores. No entanto houve outros templos nesta praça, dos quais D. Jorge de Mascarenhas deu notícia na sua memória escrita entre 1615 e 1619. Afirmou que a vila tinha quatro igrejas: a matriz com um vigário, quatro capelães de el-rei, um pregador e um provizor, e as outras são a Misericórdia, Nossa Senhora da Luz e São Sebastião, além da ermida de Santo António do Socorro e do Anjo da Guarda, ambas situadas em cima da muralha.
Pedro Dias