CRÓNICAS DA PESTE MANSA

O Miradouro

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No tempo de antes da peste, o miradouro dividia-se em dois sectores : em baixo, no espaço que ficava entre o Adamastor e o gradeamento, amontoava-se a marginalidade de pequena monta ; estavam por lá uns quantos exemplares que faziam questão de viver rituais iniciáticos, com frases nubladas que ninguém entendia e gestos privativos, enigmáticos. Também por lá circulava o "hach", fumado em comum com os namorados e as namoradas. Mais acima, em local delimitado, o quiosque das bebidas turísticas.

O Adamastor mantinha uma compostura silenciosa, assistindo àquilo tudo com a reserva da respeitabilidade. Como é sabido, o Adamastor pretende ser um monumento feio, mas sumamente respeitável. Evoca naquele lugar aqueles que a tradição consagrou como intrépidos navegantes , taratas marítimos da velha Pátria idealizada. O idealismo daquele montão de pedra ia ao ponto de lhe terem colocado a miniatural escultura de um dos tais navegantes, atónito de patriótico cagaço, mas a lembrar-se, por antecipação, da vontade pessoana que o atava ao leme e que um tal poema dizia ser de El-Rei D. João II. Mas quem se borrifou para patriotismos pretéritos e para esse tal João, o Segundo, foram os ladrões das miniaturas. Assim, foram desaparecendo dois ou três aditamentos antropológicos da estátua do Adamastor, eventualmente trocados na Feira da Ladra por uns cobres saídos da bolsa dum turista lambão ou dum especulador ocasional.

Mais acima do rebordo existia e existe um quiosque. As bebidas e o café mantêm preços de esplanada e a malta do "hach" desdenhava do lugar, por tanto querer comprar a tal bebida do estatuto social, a um tempo cobiçada e repelida.

No miradouro, tanto nos tempos anteriores à peste mansa como no agora, o desafio irrecusável é ficar. Ficar ali, nessa varanda de Santa Catarina, com o pulmão líquido do "mar da palha" a esbater-se devagar na linha do horizonte e a acomodar a Outra Banda numa neblina composta de azul e de poluição.

A turistada fazia do local sítio obrigatório de romaria. A malta da droga , um pouco incomodada, permitia. Eventualmente para mofar deles todos, à socapa, verdadeiramente por se render àquela fauna ávida de sol e de brisas lentas, vindas da lonjura da Ponte ou dos braços desolados do Cristo Rei.

A peste mansa ainda não me tinha metido em casa quando eu frequentava aquele local todos os dias. Almoçava na minha tasca do costume e ia até lá. Comecei a conhecer de vista aquela malta toda, além do panasca mulato que também por lá estava , estendido ao sol, como um lagarto. O homossexual trazia sempre, a tiracolo, um devoto; mas esse, branco. Chamava-lhe "filhinho" e pedia-lhe, nos dias de mais intenso sol, que lhe tirasse de um saco de cabedal o baton protector, com que lambuzava os beiços, num desenho preguiçoso.

- "Filhinho, passa-me o baton". Procura, filhinho, deve estar no fundo do saco".

Depois da operação, sempre mantendo uma pose langorosa, o tipo esticava-se ao sol. Como um lagarto, sim, como um lagarto. O "filhinho", fiel e rendido, vigiava-lhe o sono, com o apontamento de um sorriso de beneplácito, que lhe corria acima do queixo.

Deu-se depois o caso de terem por lá reconstruído um palacete velho, agora transformado em hotel de luxo. O miradouro sofreu uma metamorfose de respeitabilidade. A Câmara Municipal, talvez mandatada pelo poder do dinheiro, entendeu que devia resolver a situação com a habitual hipocrisia democrática. Simulou inquéritos e debates, para concluir o que já havia decidido à partida. Ou seja, o gradeamento do espaço, encerrando-o entre o cair da noite e a manhã.

Quando lá voltei, à distância de uma semana da eclosão da peste mansa, o Adamastor acomodava-se num rincão de terreno ajardinado. Lá mais bonito estava, não poderei dizer o contrário. Mas também mais desacompanhado. Apeteceu-me dizer-lhe, a ele e ao "pendura" miniatural, "filhinhos, arranjem um baton e guardem-se dos rigores do sol a pique".

Mas entendi que aquilo poderia soar a coisa demasiado paneleira e calei-me. Só guardei para mim a imagem langorosa do mulato, esticado num degrau, como se estivesse a pedir ao Adamastor e ao colega que o deixassem ficar por lá, por entre as virações, vindas da Outra Banda.  

Imagem retirada da net

Amadeu Homem