O RELÓGIO E AS MARIONETAS
Mais uma vez, numa conversa com o meu amigo José Augusto, falamos sobre o que poderia ser o oitavo pecado capital, caso viesse a existir.
Já houve em tempos algo que seria considerado pecado, mas não capital.
A melancolia.
Embora não tenha sido considerada o oitavo pecado capital na tradição cristã, tem sido associada a estados de tristeza, apatia e desespero, que podem levar a comportamentos pecaminosos. Os sete pecados capitais tradicionais, no entanto, foram estabelecidos ao longo do tempo e representam características consideradas especialmente prejudiciais para a alma e para a sociedade. A melancolia, sendo mais um estado emocional, pode não ter sido incluída como um pecado capital específico, mas certamente pode contribuir para desencadear outros pecados, como a preguiça, a ira ou a inveja.
Mais uma vez, o José deu- me um exemplo de uma gravura conhecida que se chama precisamente, melancolia que eu desconhecia.
Eu fiz algumas pesquisas sobre esta obra, porque ainda consigo controlar os meus pensamentos. Neste caso, a curiosidade e a busca pelo conhecimento.
Nestas pesquisas, se algo não estiver correto, que me corrijam os conhecedores desta obra e deste artista.
"Melancolia I" é uma gravura famosa criada pelo artista renascentista alemão Albrecht Dürer no ano de 1514. A gravura representa uma figura feminina, supostamente a melancolia, rodeada por várias ferramentas e símbolos, como um compasso e um sólido dodecaédrico. A obra é conhecida pelas suas interpretações simbólicas e enigmáticas, muitas das quais atribuem à melancolia, um estado de espírito associado à criatividade e à busca pelo conhecimento. Dürer incorporou muitos elementos alquimistas e matemáticos na obra, gerando diversas teorias e interpretações ao longo dos séculos.
Imaginemos que num futuro próximo, a humanidade seria privada de ter raciocínio próprio.
Num mundo onde os ponteiros de um relógio do tempo determinassem cada ação. Onde a liberdade de pensamento é um luxo do passado e a existência humana perde a sua essência.
Imaginar tal realidade é como testemunhar a própria alma sendo despojada de vontade, sentimentos e propósitos. Nesse cenário, como o relógio inabalável do tempo, controla cada instante, seres humanos como minha mãe, por exemplo, que enfrenta a terrível névoa da doença de Alzheimer, também a humanidade se tornaria refém das suas próprias mentes fragmentadas.
Como uma guardiã do relógio da minha mãe, sinto-me responsável em ser a sua âncora à realidade, a sua bússola no mundo turvo em que vai vivendo e mergulhando.
No entanto, confronto diariamente a inevitabilidade do outro relógio do tempo, que continua a impor sua vontade impiedosa. Enquanto luto para manter viva a sua chama interior, percebo que também travo uma batalha pessoal contra a tirania do tempo. Uma batalha que, temo, possa um dia assolar a minha própria existência.
Viver num mundo onde a individualidade é suprimida e a diversidade de pensamento é apagada, seria sucumbir a uma existência vazia, desprovida de cor e significado. A cada segundo, resistimos, lutamos e agarramo-nos à esperança de que, em algum instante , a luz da autonomia e da singularidade possa novamente brilhar sobre nós.
Imagine- se um mundo distópico, onde a humanidade é subjugada por um misterioso mecanismo que priva as mentes de sua autonomia. Um relógio do tempo que cruelmente controla e manipula cada indivíduo, deixando-os desprovidos de vontade, sentimentos e ambições
Nesse cenário sombrio, as pessoas não conhecem mais o amor nem o ódio. Não há diálogo, não há laços, não há horizontes nem empatia.
Somos simples marionetas.
Há somente correntes que nos aprisionam ao relógio que nos controla.
Nesse universo de opressão, porque seria pecado pensar, eu exemplifiquei o caso da minha mãe que cada vez mais, está prisioneira desse relógio que eu teimo em atrasar.
Sangro de dor pelo sofrimento das correntes que a arrastam para esse mundo sem cor.
Sinto a dor de a ver cada vez mais ligada ao " tic tac" que lhe comanda os pensamentos.
Num mundo e numa sociedade, em que cada vez mais estamos dependentes das máquinas que nos privam de ter pensamentos próprios, vejo num futuro próximo a humanidade sofrer o oitavo pecado capital.
A incapacidade e a privação do pensamento.
Só espero que entretanto, esse relógio pare de avançar com direção ao futuro e que o pecado seja só o imaginário da minha mente que ainda consegue pensar.
Manuela Jones