O LENDÁRIO POÇO DO ALMEGUE: LENDAS DA FREGUESIA DE SANTA CLARA
Na tranquilidade da freguesia de Santa Clara, onde os ecos do passado se cruzam com o presente, ergue-se o lendário Poço do Almegue, situado numa das quintas que teria o mesmo nome. Um lugar envolto em mistério e tradição. Este poço, situava se na localidade da Guarda Inglesa, nas imediações do atual Fórum Coimbra, é um testemunho silencioso de histórias que atravessaram gerações. A minha mãe, com a sabedoria que só os mais velhos possuem, costumava partilhar as lendas que cercavam este local, onde a linha entre o real e o fantástico se torna cada vez mais ténue.
A designação "Guarda Inglesa" remonta a tempos históricos em que a região foi marcada pela presença de tropas britânicas durante as Guerras Napoleónicas. O chefe das forças inglesas na região era o Conde Wallington, que desempenhou um papel crucial na defesa de Portugal contra as invasões napoleónicas. Ele liderou as tropas britânicas, que se destacaram na luta ao lado dos portugueses, e a sua influência deixou uma marca indelével na toponímia da freguesia. A designação da localidade perpetua a memória da ocupação e dos laços formados entre os dois povos, especialmente durante um período tão conturbado da história.
O Poço do Almegue é descrito como um braço de água tenebroso que, segundo as tradições locais, levava as almas dos que ali caíam para as profundezas do inferno. O povo contava que, uma vez engolido pelas suas águas, nunca mais se via o corpo, mas apenas se ouvia o lamento das almas perdidas. Uma das histórias mais marcantes é a de um oficial chamado Massey, que, ao passear a cavalo pelo areal do Mondego, decidiu atravessar o "lago", acreditando que a profundidade era escassa. Infelizmente, este erro fatal ocorreu a 15 de Março de 1827, e o oficial afogou-se nas águas traiçoeiras do poço. Os seus colegas, em reconhecimento à sua bravura e ao trágico destino, suplicaram aos Cónegos Crúzios que permitissem fosse sepultado na Quinta do Mosteiro, o que acabou por se concretizar no laranjal da antiga Quinta de Santa Cruz.
As lendas do Poço do Almegue não se limitam a tragédias de soldados. Uma das mais intrigantes é a de um homem com uma carroça que desapareceu nas suas águas. Dizem que, à noite, o seu espírito ainda perambulava por ali, clamando por ajuda com um grito angustiante:
- "Arre burro! Eixe pra diente!"
Aqueles que já passaram pela zona afirmam ter ouvido o eco das suas exortações, sentindo um arrepio na espinha. Este apelo desesperado parece ressoar nas noites tranquilas de Santa Clara, evocando um tempo em que a vida e a morte coexistiam nas sombras do poço.
A construção da ponte do Açude levou ao atulhamento do Poço do Almegue, selando para sempre os segredos que as suas águas guardavam. Não muito longe dali, erguia-se a famosa ponte do Sr. Modesto, um marco que muitos ainda recordam com nostalgia. Esta ponte, situada nas proximidades do poço, era um importante ponto de passagem para os habitantes, ligando o passado ao futuro e perpetuando a memória do lugar.
As lendas que cercam o Poço do Almegue são mais do que meras histórias, são fragmentos da identidade de Santa Clara. Elas falam de vidas perdidas, de almas inquietas e de um espaço que, embora agora oculto, ainda ressoa na memória coletiva. A presença do poço, mesmo em silêncio, continua a influenciar a vida na freguesia, alimentando a imaginação e a curiosidade de quem por ali passa.
Através das narrativas da minha mãe, percebo que o Poço do Almegue não é apenas um local físico, mas também um símbolo do que nos liga ao nosso passado. As histórias sobre ele são uma ponte entre gerações, um modo de manter viva a conexão com aqueles que vieram antes de nós. Cada relato traz consigo uma lição, um aviso sobre os perigos que podem estar ocultos nas águas tranquilas, e um lembrete de que a morte, embora inevitável, não apaga a memória da vida.
Assim, ao falar novamente sobre a minha freguesia, deixo que as lendas do Poço do Almegue ressoem nas palavras que partilho. Que as histórias que nos envolvem e nos moldam sejam sempre contadas, não apenas para recordar, mas para manter viva a chama da nossa cultura e identidade. Afinal, cada lenda é um testemunho do que fomos e do que ainda podemos ser, um convite para olhar para o passado e, ao mesmo tempo, para o futuro que nos aguarda.
Em Santa Clara, a história flui como as águas do poço, misteriosas e profundas, convidando cada um de nós a mergulhar na sua riqueza e a descobrir os segredos que aguardam pacientemente para serem revelados.
Bom fim de semana.
Boas leituras.
Manuela Jones