Margarida e a Gaivota

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2.

A manhã acordou cheia de sol e de boa disposição. A mãe deixou-me vestir uns calções e uma t-shirt, o pequeno-almoço estava delicioso e havia uma grande animação na piscina e no bar. Eu já andava à cata de insetos, na beirinha da amurada, com uns miúdos divertidos. A certa altura, a Marta fez-me sinal para eu olhar para trás das mesas, dispostas em filas perfeitas, no convés. Esbugalhei os olhos. No parapeito da amurada, exatamente no local da véspera, a gaivota olhava-me fixamente. Não duvidei de que se tratasse da nossa amiga da noite anterior. Novamente saltou para o chão, aos pulinhos, e dirigiu-se a mim. A princípio todas as pessoas acharam alguma graça ao verem a ave deambular por ali. Mas, quando ela chegou perto de mim e começou a dar-me bicadinhas nas pernas, houve um murmúrio de receio. A mãe gritou e o avô levantou-se, imediatamente, para me proteger, mas a Marta segurou-o por um braço. Rapidamente, todos perceberam que a gaivota só queria brincar. Empurrava-me com a cabeça, eu corria, ela voava, eu corria e já todos se riam.

Cansada, sentei-me no chão, com a cabeça encostada ao gradeamento do convés e a gaivota pousou ao meu lado. Ambas contemplávamos o mar, em silêncio. Olhei para ela e a minha voz soou no meu interior:

— Afinal, não és uma gaivota-tridáctila, não tens as patas pretas.

— Não, sou uma Larus Michaellis, tenho as patas amarelas, não vês? – grasnou a gaivota. – E ainda sou muito nova. Olha para o meu bico, falta-me uma manchinha vermelha na ponta. Só aparecerá quando eu for adulta. Sou uma ave costeira.

Estupefacta, olhei para os lados, para trás, mas ninguém parecia ouvir a gaivota. Aliás, eu tinha noção de que a minha voz só ressoava na minha cabeça.

— Se és uma ave costeira, como é que estás aqui, em alto mar? – perguntei-lhe.

— Fugi – respondeu ela, crocitando baixinho. — Outra vez. Fujo muitas vezes do bando.

Apavorada, perguntei-lhe:

— Fugiste?! A mim também me apetece fugir, muitas vezes, mas descobriam-me logo e a minha família ficaria muito aflita. Uma vez, antes de eu nascer, o Nino — é um gato meu amigo, de casa do avô — fugiu. Contaram-me que até cartazes colaram nos postes à procura dele. Imagina se fosse eu a fugir! Mas devia. A minha mãe quer que eu seja modelo e empresária, enche-me de vestidos e laços. Coisas que eu odeio. O meu sonho é ser entomóloga. Adoro insetos. Mas a minha mãe diz que nunca me deixará trabalhar com aqueles bichos nojentos. E tu, por que é que foges?

A gaivota não sabia o que era uma modelo, uma empresária nem uma entomóloga. Mas explicou-me:

— Tal como tu tenho um sonho: conseguir um voo perfeito. Dizem que o herdei do meu tetravô, Fernão. Era uma grande gaivota que se tornou famosa entre todas nós por ter dedicado a vida a aperfeiçoar o voo. Ensinou muitas coisas às outras gaivotas, mas os seus ensinamentos foram-se perdendo.  O meu bando passa os dias nos aterros sanitários — um nojo! —, nos campos e nas cidades à procura de comida. Eu desejo outras coisas. Voar sem limites, para onde me apetecer.

— E não tens saudades da tua família? E não te proíbem? Como é que consegues fazer isso sozinha, se ainda és nova? — bombardeei-a eu.

— Nunca desisto. Aos poucos, os meus pais hão de perceber que tenho de seguir o meu sonho. Além disso, volto sempre para casa — retorquiu a minha amiga. — Mas, tu não precisas de fugir. Ainda és muito nova, vê-se pelo teu tamanho. Podes ir convencendo os teus pais de que precisas de realizar o teu sonho. Não desistas. Só podemos ser felizes se tentarmos realizar os nossos sonhos. Mesmo que não o consigamos, temos de tentar sempre. E também se é feliz a tentar. Vocês, os humanos, costumam dizer que o que importa não é a chegada, é a viagem.

Ficámos mais uns minutos de olhos postos no horizonte, cada uma a magicar no seu sonho. A certa altura, a minha amiga gaivota esticou-se, sacudiu as asas e despediu-se de mim:

— Tenho de voltar. Promete que não te esqueces de mim, quando cresceres, e que não desistes do teu sonho.

— Prometo! — respondi eu, com convicção.

A gaivota deu-me uma bicadinha na perna e levantou voo. Demorou a desaparecer no horizonte, voando e planando com uma elegância cuidada.

Olhei em volta e preparei-me para ouvir os murmúrios de estupefação de todos por terem ouvido uma gaivota falar. Mas, o ambiente mantinha-se igual. Corri em direção das mesas e praticamente gritei de entusiasmo:

— Mãe, mãe, ouviste a minha conversa com a gaivota?!

— Que conversa? Já não tens idade para essas fantasias! – respondeu a minha mãe, enfadada.

Desolada, olhei para os adultos. Todos sorriam com complacência. O avô piscou-me o olho, mas percebi que não acreditava em mim. Sentei-me num cantinho da amurada, com os cotovelos nos joelhos e as mãos no queixo. A Marta veio sentar-se ao meu lado. Sem pudor, contei-lhe a minha conversa com a gaivota.

— Custa-me acreditar que a gaivota tenha falado contigo, mas o importante é que te lembres sempre de seguir os teus sonhos, de nunca desistires de ser feliz — animou-me a amiga do avô.

Entrelacei a minha mão pequenina na dela e ficámos em silêncio, durante muito tempo.

 

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