Eli Cohen, o espião israelita mais árabe de todos.
“Finge até tu próprio acreditares” parece ter sido o lema, destino, salvação e incúria de Eli Cohen, o mítico espião israelita que se tornou um herói nacional e um símbolo do estoicismo judeu como nenhum outro. Acreditou tanto que era árabe, acreditou tanto no seu disfarce como herdeiro sírio de uma fortuna argentina, que quase se tornou um deles. O excesso de confiança acabou por lhe ser fatal.
Eli Cohen nasceu no Egito, em Alexandria, em 1924, numa altura em que ser patriota e judeu eram realidades que podiam coexistir. A sua educação acontece pelos pressupostos judaicos, mas Eli é egípcio e foi um dos organizadores dos protestos estudantis durante o tempo da ocupação britânica. Depois de os seus pais terem voltado a Israel, para integrar o novo país que nasceu em 1948, Cohen ficou no Egito, como voluntário envolvido na repatriação de judeus.
Em 1954 foi preso pelas autoridades egípcias sob suspeita de estar envolvido em atividades terroristas. Os outros estudantes que enfrentavam com ele as mesmas acusações foram executados, mas Eli escapou por não existirem provas conclusivas contra ele. Por altura da crise do Suez foi repatriado de vez para Israel, juntamente com milhares de outros judeus que ainda viviam no Egito.
O plano para a unificação do Egito e da Síria numa República Árabe Unida assustava Israel e os serviços de informações do jovem país precisavam de jovens como Eli, com um conhecimento alargado dos meandros árabes. Eli sabia que seria recrutado, disse o seu irmão Maurice em várias entrevistas, mas não foi por espírito de aventureiro, antes por espírito de missão, que aceitou o cargo na Mossad. “Ele não queria aventura. Era um patriota e estava consciente daquilo que o esperava. Voluntariou-se para evitar um segundo Holocausto sobre a sua gente. Não creio que sonhasse com uma vida de espião”, disse Maurice. Mas foi precisamente uma vida de espião que ele teve, daquelas que fazem acreditar que aquilo que o cinema mostra não é assim tão ficcionado.
No início de 1961, o AMAN (Agaf Ha-Modi’in), o ramo de espionagen das Forças de Defesa Israelitas, enviaram Eli para a Argentina e deram-lhe uma identidade nova. Passou a "ser" sírio, herdeiro de uma família síria-argentina com fortuna no ramo da tecelagem.
É nesta altura que se torna Kamel Amin Thaabet e recebe como primeira missão conhecer de perto a comunidade síria em Buenos Aires. Rico e extravagante, vestido sempre com a roupa mais cara e confecionada à medida por alfaiates de Paris e Londres, é com facilidade que Kamel se torna uma presença querida nas festas e eventos da comunidade. De acordo com os relatos publicados mais tarde por Natalio Steiner, diretor do jornal argentino “Comunidades”, “a sua reputação de perdulário permitiu-lhe estabelecer contactos muito importantes entre a comunidade e, através deles, outros ainda mais importantes na Síria, por onde passaria em breve o seu destino".
Foi assim que conheceu o general, adido militar da embaixada síria e futuro Presidente da República. Em todas estas festas, recepções e eventos na alta roda, ia sempre deixando claro ter saudades do seu país natal, que dizia ser a Síria, onde gostaria de investir os seus milhões na melhoria das condições de vida dos compatriotas.
Em 1962 estabeleceu-se em Damasco e os contactos que tinha feito na Argentina tornaram a sua adaptação quase imperceptível, o que é exatamente o que um espião deseja. Depois do golpe de estado de 1963, o seu amigo general Amin Hafiz viu em Eli, ou em Kamel, um confidente, um patriota, um homem educado e com visão, preparado para abrir os cordões à bolsa. O pai de Eli tinha crescido em Aleppo, um árabe judeu. Logo, o seu filho tinha adquirido aquele sotaque das ruas estreitas da maior cidade da Síria, o que o ajudou bastante no disfarce.
Kame tornou-se praticamente parte do governo. Há quem diga que esteve perto de se tornar ministro da Defesa. Talvez aí tivesse perdido o controlo e feito alguma coisa contra Adolph Eichmann, um dos arquitetos do Holocausto cuja localização Eli conhecia através da sua amizade com um comerciante sírio. Mas nada o faria desviar-se do caminho, nem o desejo de vingança.
Kemal recebia os ministros com os melhores vinhos que ele apenas fingia beber enquanto eles, ébrios, contavam segredos de um Estado que se opunha fortemente à existência de Israel. Ao longo de três anos, as informações que enviava para Israel tornar-se-iam vitais à resistência feroz que o país construiu contra os estados árabes.
Através do seu poder de persuasão, responsáveis militares sírios levaram-no a visitar os Montes Golã, de onde Cohen avistou três linhas de defesa com morteiros apontados a Israel e não apenas uma como se pensava. Além disso, Cohen informou os israelitas das armas soviéticas que alargavam os arsenais sírios e aconselhou os responsáveis pelos destacamentos militares sírios perto da fronteira com Israel a plantar árvores por cima de cada caserna porque o sol era inclemente para os soldados. Assim fizeram, marcando com uma grande mancha verde os alvos que Israel não teve qualquer problema em localizar e destruir.
Uma noite, em janeiro de 1965, Eli descuidou-se na sua urgência de avisar o seu país que estava iminente um ataque a um kibbutz, as comunidades rurais judaicas que foram a base da vida judaica ao longo do último século. Mas a Síria estava já desconfiada de um espião a alto nível e, às vezes e sem avisar, desligava todos os sinais de rádio para apanhar interferências. Eli foi preso, interrogado e preso. Foi condenado à morte e nem a enorme campanha internacional pela amnistia desviou os sírios da sua vingança. Dia 18 de maio foi enforcado na Praça dos Mártires e ali ficou, em exposição e aviso, durante mais de seis horas.
O seu irmão, que fazia parte dos serviços secretos mas não estava no terreno, nunca se perdoou. “Eu tinha todo este conhecimento e o meu coração preenchido por um terrível dilema. Deveria eu interceder para que a missão dele fosse fechada mais cedo para que ele pudesse ir viver com a sua família, mas ser considerado um traidor pelo meu povo e pelo meu país? Ou descurar a informação que tinha e deixar Eli nas mãos de Deus e deixá-lo completar a sua missão sagrada de proteger a nossa terra sagrada contra os insanos inimigos? No fundo, eu sempre soube que só tinha a segunda opção”, disse à Jewish Bible Society.
O corpo de Eli nunca foi devolvido a Israel, apesar de todas as diligências ao longo dos anos. Com a guerra civil que toma o país há mais de sete anos, é pouco provável que alguém ainda saiba onde foi enterrado. O que foi encontrado foi o seu relógio - e a Mossad investiu vastos recursos neste esforço. Segundo o "New York Times", as secretas israelitas passaram mais de 18 meses no centro de Damasco a tentar encontrar o relógio usado por Eli Cohen. Foram conduzidas pesquisas forenses, chamados especialistas de análise de fotografia, agentes viajaram para a Suíça, onde ele o terá adquirido. Depois de três meses, os serviços secretos puderam finalmente dizer que aquele era o relógio do espião israelita.
Porque é que a Mossad se terá dado a todo este trabalho? É que não faltam israelitas a afirmar que, sem Cohen, os seis dias que Israel demorou a duplicar o seu território em 1967, passando por cima, e quase sem esforço, das defesas sírias, egípcias, iraquianas, jordanas e libanesas, teriam sido antes seis anos. E é por isso que, esta sexta-feira, o gabinete do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou, com solenidade, a recuperação de um relógio pelos serviços secretos israelitas. O relógio tinha pertencido a Eli e, por este facto, é uma relíquia nacional.
Ana França