Efervescência
O sangue salpicou-lhe o rosto, entrou-lhe nos olhos e fê-lo provar um sabor adocicado. Durante a eternidade daqueles segundos, levou a cabeça atrás e a náusea só lhe chegou quando, ouvindo os gritos ao seu redor, deparou com o lábio rachado do outro. O rosto bonito e bronzeado do betinho começava a ficar disforme, enquanto o sangue lhe empapava a camisa azul clara e as calças brancas. Bllhhecc! Que gajo é que usa calças brancas?!
Atrás dele, os amigos incitavam-no a nova cabeçada. Como sempre, para não os dececionar, Falcão preparava a investida, abrindo espaço por entre os amigos de Jorge, que o rodeavam, amparando-o, quando esbarrou em Laura.
Laura. A Jezebel, a Messalina, a puta. A causa de todos os males, os seus e os alheios. Laura. A culpada pelas tareias que o pai lhe dava desde que se lembrava de si, pela cerveja que o velho arrotava, sentado no sofá, em frente da televisão, a barriga grávida de tanta bebida e os impropérios que abrangiam os jogadores de futebol, os árbitros, a mãe, os vizinhos e, basicamente, todos os filhos da puta do mundo. Laura. A culpada pelos dias inteiros que a mãe passava na cama, encharcada em comprimidos. Laura. A culpada pelo pânico dos roubos, troça e murros na escola.
Laura que conhecera há oito meses e a cuja paixão se agarrara como um náufrago a um pequeno ramo de oliveira, em mar bravio. Laura que, depois de quatro meses, se desencantara da sua rudeza, da sua fanfarronice e, sobretudo, do seu “laissez faire, laissez passer“, como ela dizia. Laura que, desde então, não tivera sossego. Falcão passara a vigiá-la com olhos de predador, a persegui-la, a estragar-lhe amizades e amores. Para ele, a vingança servia-se a ferver!
A culpa era dela, como sempre. Naquela tarde, aparecera na discoteca dele. Era o seu espaço e ela sabia-o. Bonzão. Como encontrar outra discoteca que fosse uma tão perfeita extensão de si? Se ao menos tivesse ido com as amigas. Mas não, tinha de aparecer com os betinhos do Porto. Passara aquelas horas com o sangue a girar-lhe nas veias a uma velocidade estonteante. A maior parte dos amigos incitava-o a agir. Só Carlos, o amigo de sempre, o tentava acalmar e evitar a tragédia que se adivinhava. Mas a explosão dentro de si tornou-se inevitável quando Rick Astley parou de cantar “Never gonna give you up” e se deu aquele momento em que as luzes baixavam, a música se tornava mais lenta e a pista se organizava em parzinhos que já se vinham a formar há algum tempo.
A seta envenenada de um Cupido sarcastico-brincalhão atingiu-o em pleno, queimando-o com a força de um relâmpago. As várias Cuba Livre que já tinha bebido não lhe tinham permitido fixar-se no morenaço de cabelo fininho que se levantava do sofá azul elétrico e, pela mão, levava Laura para debaixo da bola de luzes, no meio da pista. Aos primeiros acordes de “Classic”, ainda Adrian Gurvitz não começara a cantar, já o futuro presunto enlaçava a cintura de Laura que, não se fazendo rogada, rodeava o pescoço do rapaz. Aos tropeções, avançou pela pista, meteu o seu corpanzil entre os dois, separando-os e, agarrando o galaró pelos colarinhos, cuspiu-lhe a sua voz entaramelada:
- É a nossa música, cabrão!
Ora o galaró, não sendo um franguinho de capoeira nem tendo bebido mais do que um suminho de laranja – precisava de um corpo são para os seus engates -, fez peito a Falcão, que, de visão já bastante toldada e alma desfeita, se estatelou no chão.
O portuense não se dera ao trabalho de viajar de comboio até Coimbra e de pedir as roupinhas de playboy de bar de alterne ao primo para nada conseguir da rapariga. Vendo-se rodeado pelos quatro amigos que trouxera e vislumbrando uma oportunidade de se mostrar a Laura como um herói, não se apercebeu imediatamente do zumbido que crescia à sua volta.
A multidão ondulava em direção à Entrada/Saída da discoteca. Levantados pelo ar, Falcão e Jorge prendiam os olhos um no outro. Enquanto eram levados acima do chão pelas estreitíssimas escadas, o ódio do primeiro fazia crescer o pânico do segundo. Num minuto, que a ambos parecera uma década, estavam na rua. Mas o calor sufocante da cave fechada estendia-se à rua, tal como o suor e o cheiro a euforia, a ódio e a medo.
Por breves instantes, Falcão deixou de ver Jorge. Só mais tarde, saberia o nome do rapaz, já na esquadra. Mas nem o ponderado Carlos conseguiu dissuadir os amigalhaços de abrirem alas para o confronto.
A polícia chegaria uns minutos depois do 112.
PC