CALÇADA DE CARRICHE
«Luísa sobe, sobe a calçada,
sobe e não pode que vai cansada.
Sobe, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe sobe a calçada. »
António Gedeão
Ao recitar essas linhas, é impossível não sentir a carga emocional que elas carregam. Recentemente, numa visita à cidade de Setúbal, fui convidada a conhecer o Museu do Trabalho Michel Giacometti. Esta experiência não foi apenas uma visita, mas uma verdadeira viagem ao passado, onde as memórias e as histórias de vida se misturam revelando o labor e a luta de tantos que vieram antes de nós.
Logo ao entrar no museu, fui recebida com um largo sorriso onde me foi atribuído um dispositivo que nos guiava, explicando, passo a passo, cada exposição. Essa tecnologia, mesmo tempo moderna respeitava toda a história, permitindo-me mergulhar nas narrativas de uma época em que o trabalho era o centro da vida. As imagens, os sons, as canções e os objetos contavam histórias de superação, resiliência e, por vezes, de tristeza, como as de" Luísa", do poema de António Gedeão, que sobe a calçada cansada, simbolizando a luta diária das mulheres que, como ela, se dedicaram ao trabalho duro, muitas vezes em condições adversas.
Um dos momentos mais marcantes da visita foi a entrada na mercearia que foi trazida para o museu. Assim que pisei no chão de ladrilhos antigos, as recordações da minha infância vieram à tona. Lembrei-me das caminhadas de três quilómetros que fazia, ainda criança, para ir aos recados à minha mãe. Naquelas idas e vindas, a mercearia era o coração do nosso bairro. Era um espaço onde as famílias se encontravam, onde se trocavam não só produtos, mas também histórias de vida, lágrimas e sorrisos. O cheiro do pão fresco, do café moído vendido a retalho em cartuchos de papel pardo, feitos à mão, das especiarias, o petróleo para os candeeiros, o som das conversas animadas e o calor humano que ali existia, eram verdadeiramente especiais.
Contudo, à medida que explorava as exposições, percebi que a nostalgia que sentia era também acompanhada por uma dura realidade. O museu não apenas recorda um passado, mas também expõe as duras condições de trabalho que muitos enfrentaram, especialmente as mulheres que eram mães, esposas e trabalhadoras. O seu papel multifacetado era muitas vezes invisível. Porém o museu traz à luz as longas horas que passavam a trabalhar em fábricas conserveiras, onde o cansaço se acumulava e as condições de trabalho eram precárias.
As mulheres, que carregavam o peso da responsabilidade familiar e laboral, são uma presença marcante nas histórias contadas no museu. Elas eram aquelas que, após um dia de trabalho extenuante, chegavam a casa e dedicavam-se aos filhos, à casa, à comida ou à lavoura, muitas vezes ainda sujeitas à violência dos maridos. O poema de António Gedeão é aqui um retrato verídico de uma luta , pois as "Luísas", ao chegarem a casa, não têm muito tempo para descansar. Assim que entram, pegam nos filhos, dão-lhe de mamar, comem a sopa, o pão que o" diabo amassou"a correr e, ainda assim, encontram forças para as restantes lides. Este retrato da vida quotidiana é um reflexo da luta constante por dignidade e reconhecimento, que muitas mulheres enfrentaram e ainda enfrentam até aos dias de hoje.
O museu serve como um poderoso exemplo de que, se olharmos atentamente para o passado, perceberemos que não estamos assim tão distantes dele. As lutas que as mulheres enfrentaram na indústria conserveira de Setúbal, ecoam nas batalhas atuais por direitos laborais e igualdade. O espaço expõe não apenas a história de uma indústria, mas também as histórias de vidas que, apesar da exploração e das condições difíceis, resistiram e se adaptaram.
Enquanto caminhava pelas salas do museu, envolvida por esses relatos, fiquei impressionada com a força das narrativas. A combinação de tecnologia e tradição, com os dispositivos que explicavam cada detalhe, tornou a experiência ainda mais imersiva. Senti-me parte daquela história, como se a "Luísa" e tantas outras mulheres me estivessem a contar as suas vidas.
Ao sair do Museu do Trabalho Michel Giacometti, levava comigo não apenas as memórias revividas, mas também uma nova consciência sobre a importância de preservar a história e lutar pelos direitos de todos os trabalhadores. O legado de Michel Giacometti e a trajetória da indústria conserveira em Setúbal são partes vitais do nosso património, que merecem ser recordadas e valorizadas.
Durante este período que parece tão longínquo, mas que, na verdade, é bastante próximo, as mulheres conseguiram alcançar e consolidar o seu lugar na sociedade. Grandes vitórias foram conquistadas por todas as "Luísas" que, diariamente, deixam as suas casas em busca de uma vida melhor. Este percurso é um testemunho da força e resiliência femininas, que têm desbravado caminhos e derrubado barreiras, contribuindo para uma sociedade mais justa.
A visita ao museu foi uma redescoberta, onde o passado e o presente se misturam, convidando-nos a refletir sobre as lutas que nos trouxeram até aqui. "Luísas", com a sua força e perseverança, são um símbolo da resiliência feminina que deve ser celebrado e honrado, pois, no fundo, a história de Setúbal e das suas gentes é também a nossa história. Que possamos continuar a subir a "calçada", procurando a justiça e a dignidade para todos.
Fecho este artigo de opinião como comecei, com o poema de António Gedeão:
«Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.»
M. Jones