Editorial 29-04-2023

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Rumores de Gaiolas 

Na rua, os passantes ignoravam o que se passava do outro lado.

Tudo parecia calmo por detrás de árvores e arbustos que se vislumbravam bem longe. As janelas pareciam pequenas e rasgadas, como se tivessem sido riscadas várias vezes, para que o sol não esquentasse todo o interior de uma só vez. Tudo tinha sido pensado, o objetivo era saborear cada dia sem pressas: o café que aquecia as mãos sedentas de amor; o cigarro que iluminava os quatro cantos do quarto e o resto do dia que se avizinhava longo.

Lá dentro, não se cruzavam com a regularidade desejada, mas trocavam ideias e outras coisas, por vezes pecados.

A cada dia se seguia mais um longo desafio e, de vez em quando, sonhavam, sonhavam e sonhavam sem vontade de regressar ao café que aquecia as mãos sedentas de carinho; ao cigarro que os consolava de morte e ao resto do dia que se repetia sem fim. Tinham o fardo garantido e o que antes parecia um sonho de imensa estranheza transformou-se num verdadeiro pesadelo.

Ignovaram os rumores de tantas Gaiolas e tinham nas penas o desejo de voar para bem longe. Por agora, voam letras em palavras de saudades que se guardam como lembranças douradas, beijos que chegam tardiamente entre gotas salgadas e a voz trémula que reinventa a magia de um regresso inesperado.

Mais tarde, acabarão esvoaçando na esperança de nunca mais voltar ao ritual do café, do cigarro e dos quatro cantos...

 

Cébazat, dia 29 de Abril de 2023

A poetisa de pé-descalço não respeita o AO90

Pintura de Sandra Filardi