VOZES SALATINAS: A MEMÓRIA RESISTENTE DE UM POVO ESQUECIDO NO CORAÇÃO DE COIMBRA
No silêncio das ruas do Bairro de Celas ainda ecoam as vozes da Alta. Vozes de um povo realojado à força, apagado dos livros e ignorado nas praças. Mas não calado, ainda que com choro, vozes tremulas e emoção à flor da pele, vivem também, da sua resistência resiliente. A estreia do documentário “Salatinas”, de Rafael Vieira, Tiago Cerveira e Filipa Queiroz, reacendeu a memória de uma comunidade inteira — gente que resiste na pele, nas palavras e nas perdas.
O jornal O Ponney reuniu testemunhos de quem viu, sentiu e herdou o passado salatina: antigos moradores, filhos e netos, como Rafael Vieira, Sónia Rodrigues, Maria de Lurdes Dias (mais conhecida por Milú), Filipe Sampaio e Marta Carvalho — descendentes que carregam, no corpo e na alma, a história de um território arrancado, mas jamais esquecido.
Os Salatinas, hoje, já nasceram, muitos deles, no Bairro de Celas, mas não — foi ali que tudo começou. Embora herdeiros dos originais não apagaram as suas memórias, ficando, também, presos à lembrança de um passado esquecido. Cresceram com o tempo, com a força, com a verdade e muito sacrifício. Hoje, estão espalhados pela cidade inteira. Estão no país e no mundo. Estão nas ruas, nos becos, nas praças. Em cada esquina onde a identidade se levanta de cabeça erguida.
Os Salatinas não são só um nome. São presença. São herança e futuro. São resistência com orgulho. Onde existir voz, coragem e raiz — lá estão. Porque os Salatinas não pertencem a um lugar específico, embora comunguem de uma mesma raiz.
Pertencem a uma parte importante da História que não querem deixar morrer.
De reportagem a resgate: Rafael Vieira e a génese do projeto
«Tudo começou de forma íntima. A minha avó era Salatina.» Rafael Vieira, jornalista e arquiteto, regressou a Coimbra após anos fora e deparou-se com a ausência: da sua história que também é parte importante da História da cidade. «Senti necessidade de entender de onde vinha.» A pesquisa transformou-se numa reportagem, depois num livro — Os Salatinas: Coimbra da Saudade, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos — e finalmente num documentário, em parceria com Filipa Queiroz e Tiago Cerveira.
A recolha de testemunhos foi um processo delicado. «Houve entrevistados que choraram, recusaram, ou demoraram quase um ano a falar. Era como montar um puzzle com peças que já não existem.» Entre histórias de desalojamento e perda, surgiram memórias de infância, de brincadeiras entre escombros, de fogueiras acesas como gesto de resistência. A palavra saudade, que dá título ao livro, não é apenas poética — é descritiva. «As pessoas vivem com a memória da Alta dentro de si. Sabem que não volta, mas carregam-na como identidade.»
Sónia Rodrigues testemunhou a O Ponney :«Celas é tudo. Sair seria perder as minhas raízes».
Com 51 anos, Sónia Rodrigues, mãe de 4 filhos e já avó de duas netas é uma das vozes mais firmes na preservação da identidade salatina. Filha de Carlos Alberto Esteves Rodrigues, farmacêutico, realojado no Bairro de Celas enquanto que os seus avós continuaram a viver na Rua da Matemática na Alta de Coimbra, cresceu entre relatos do pai e visitas frequentes aos avós, que resistiram até aos anos 90 na Alta de Coimbra. «Corre-me no sangue. O bairro de Celas é onde cresci, onde construí as minhas memórias. O que me dói é ver que está tudo descaraterizado. Restam poucos salatinas.»
Sónia integrou a Associação de Moradores do Bairro de Celas (AMBC), participou nas tradicionais fogueiras e na Noite Salatina. «Só se lembram de nós em tempo de eleições. Houve tempos em que senti pressão da Câmara para sair. Mas sair seria perder tudo.»
Sónia defende um museu vivo no bairro: «Não só como homenagem, mas como espaço de escuta e aprendizagem. E sim, se houvesse um programa de regresso dos descendentes, devia avançar.»
Milú, também confirma: «Sou Salatina. E digo-o com orgulho»
Aos 89 anos, Milú é testemunha viva da Alta. Viveu na Rua dos Militares, entre alfaiates e estudantes. «Brincávamos na rua com eles. Sem maldade nenhuma.» A mudança para o Bairro de Celas foi abrupta - «Aqui era só pinheiros e passarinhos. A minha mãe chorava.»
Recriaram-se tradições: «Começámos a fazer fogueiras, a recriar a feira dos Lázaros. Jogava-se à malha, comiam-se doces.» Mas a união perdeu-se. «Parece que há inveja por sermos Salatinas.»Milú quer o documentário de Rafael Vieira, Tiago Cerveira e Filipa Queiroz, exibido no Bairro de Celas e sonha com um museu. «Para os nossos netos saberem o que passámos.»
Também recorda com muita emoção a caravana Salatina um projeto realizado em 2023 por Vânia Couto. Milú pede que a caravana salatina regresse para ficar.
Filipe Sampaio proclama: «O bairro de Celas é a herança que nunca tivemos»
Filipe Sampaio, 46 anos, pai de duas meninas, é bisneto de Flávio Rodrigues — barbeiro e guitarrista da Alta. «Quando veio para o Bairro de Celas, o meu bisavô perdeu tudo. Não foi indemnizado. Morreu três anos depois.» Perdeu-se quase tudo: “documentos, móveis, fotografias” e continua a lembrar a dor: «Guardei o que pude. Mas perdi mais do que salvei.» Ainda assim, elogia a resiliência familiar: «A minha tia Vitória nunca se deixou ir abaixo.» – emocionou-se…
Filipe acusa o esquecimento institucional. «Coimbra ignora-nos. Salatina é só uma palavra numa placa. Ninguém sabe o que significa.» Deixa um apelo direto: «Que os políticos olhem para o que foi — e para o que ainda pode ser.»
Marta Nunes de Carvalho testemunha: «Fui uma criança privilegiada. Vivi um bairro de portões abertos»
Neta de Saul Nunes, Salatina vindo da Alta e realojado no Bairro de Celas, e de Luciana, modista vinda de Elvas, Marta cresceu no número três da Rua Marco da Feira, em casa dos avós. «A minha infância foi irrepetível. Fui criada no Bairro de Celas. Quintal, vizinhas, sardinhadas, tertúlias — era tudo família.»
Guarda a memória de um bairro vivo: «A carrinha da mercearia, as vizinhas sentadas à conversa com um cafezinho, os lanches partilhados, as hortenses à entrada de casa.» Mas também recorda a ausência do avô, que um dia saiu para não mais voltar, e a dor silenciosa da avó: «Punha a roupa dele estendida para que ninguém fizesse perguntas.»
Para Marta, os descendentes sabem pouco. «Fui criada lá. A maioria nem isso. A história dos Salatinas não é ensinada.» Apoia, sem hesitar, a criação de um museu: «Acho essencial. Já fomos escorraçados uma vez. Que pelo menos a memória fique.»
E deixa uma mensagem aos candidatos autárquicos: «Tenham atenção. A história dos Salatinas é parte da cidade. É cultura. É identidade. Não se pode fingir que não existiu.»
Património vivo, não nostalgia
A história dos Salatinas não é um episódio do passado: é um espelho do presente. A segregação urbana continua. O apagamento social também. «Fala-se de terrenos baratos. Mas ninguém fala do custo humano», nota Rafael Vieira.
Todos os entrevistados pedem o mesmo: “dignidade. Um espaço de memória ativa. Um centro cultural Salatina, no bairro. Um museu onde as fogueiras se mantenham acesas. Um futuro com raízes.”
Porque, como lembra Milú: «a nossa história começou lá em cima, na Alta. Mas ainda vive aqui. E não pode morrer.»
Coimbra tem uma dívida histórica
Mas o que propõem os candidatos para honrar a memória dos Salatinas?
Em setembro de 2025, os Munícipes de Coimbra, serão chamados a decidir quem liderará os destinos da cidade para os próximos 4 anos. Mas entre promessas e programas eleitorais, há uma pergunta que o Jornal O Ponney não pode deixar de colocar: “que lugar terão os Salatinas — os homens e mulheres expulsos da Alta e realojados pela cidade fora, como é exemplo o Bairro de Celas — no futuro da cidade?”
A história dos Salatinas não é apenas memória. É identidade, é território, é ferida aberta. Ignorada durante décadas, abafada pelas paredes de bairros esquecidos, começa agora a ser resgatada pelas vozes de quem a herdou.
O Ponney desafia todos os candidatos à presidência da Câmara Municipal de Coimbra a responder, de forma clara e pública:
— Apoiam a criação de um núcleo de memória ou museu vivo no Bairro de Celas?
— Estão disponíveis para integrar o legado Salatina nos roteiros culturais, educativos e patrimoniais da cidade?
— Que medidas concretas propõem para reparar esta dívida histórica?
Coimbra da saudade, não se constrói só com prédios, constrói-se com memórias, com justiça, com dignidade de legados e tradições!
Daniela Sousa
27-06-2025