PORTAGEM E ALEGRIA

 

A FORTIFICAÇÃO E OS LIMITES DA CERCA DO COLÉGIO DE S. BENTO

 

Em 1727, uma provisão régia autorizou o Colégio de S. Bento a fazer um arruamento com novas edificações “junto ao muro” da rua da Couraça de Lisboa, “da parte da Alegria” e a abrir um postigo (ou pequena porta) na Cerca de Almedina, no meio da rua (seta a vermelho na 1ª imagem). Esse postigo ficava, precisamente, na transição entre a freguesia de S. Cristóvão e a de S. Pedro e onde se fazia a entrada para o local em que, anteriormente, se situara um rossio, na divisão das duas freguesias, logo abaixo do Colégio de Santo António da Pedreira.

À data desta provisão os frades de S. Bento já tinham uma rua aberta, numa cota mais baixa, provavelmente correspondente a um troço da actual rua da Alegria, com algumas casas já feitas e outras em construção.

Mas os religiosos eram empreendedores e pretendiam, ainda, abrir uma outra rua que, subindo o monte, ia desembocar a meio da rua da Couraça de Lisboa. Para esse efeito, alegando mau estado do muro, planeavam, inicialmente, desfazer cerca de 24m da Cerca de Almedina, para aí edificarem mais casas.

Tal não lhes foi permitido, limitando-se o monarca a autorizar o referido postigo, embora com o ónus de poder ser tapado, no caso de tal ser necessário para a defesa da cidade, imposição demonstrativa que, no primeiro quartel do séc. XVIII, a fortificação ainda continuava a ser protegida.

A cerca dos Bentos acompanhava a fortificação da Cerca de Almedina, sendo esta o seu limite, com a condição de permanecer intocável. Apenas a norte não a utilizava como estrema, desde o aqueduto até à Porta da Traição.

A poente, a cerca chegava até uma torre erguida no local onde deveria rematar a antiga “couraça velha”, acima da Porta de Belcouce (circulo a vermelho na 2ª imagem), mas abaixo da porta aberta pelos frades (por imposição régia para serventia pública), utilizada como ligação da rua da Couraça de Lisboa à Alegria.

Seguidamente, a cerca beneditina inflectia, passando a acompanhar a cortina da “couraça velha” (até ao rio). Esta era, provavelmente, o muro referido num documento de inícios do séc. XVII como a “barbacã de um seu [dos frades Bentos] salgueiral que está pegado com a Quinta da Alegria” . Não causa estranheza o muro que limitava a cerca ser designado de “barbacã”.

A marcação exacta do limite da propriedade do Colégio de S. Bento é, assim, fundamental, não só para a implantação da “couraça velha” (a "courassa" na 2ª imagem) como para a implantação da muralha e barbacã desde a da Porta de Belcouce até ao Castelo.

Em duas plantas da segunda metade do séc. XIX existentes na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, referentes ao mesmo Jardim Botânico (3ª e 4ª imagens), encontra-se representada a cerca de S. Bento, com exclusão da área urbanizada pelos frades, bem como de alguns aforamentos que os Bentos lá mantinham.

Essas propriedades terão sido, por certo, vendidas aos aforantes, no espaço de tempo que mediou entre a desocupação do Colégio e a sua integração na Universidade (data a que suponho corresponderem estas plantas).

Foi também possível perceber que a “ínsua de João Gomes Viana” não correspondia à “ínsua dos Bentos” na Quinta de Via Longa, localizando-se imediatamente a seguir ao Cais do Cerieiro. Ficava, pois, contígua à “couraça velha”, para poente, e nela se localizava um penedo, onde assentava a fortificação da Alegria (circulo a amarelo na 2ª imagem).

Portanto, a muralha não se limitava à Cerca de Almedina, existia muralha também na Portagem e na Alegria, tendo aparecido vestígios desta última quase no eixo da rua da Alegria, em Março de 2010, durante obras camarárias (5ª e 6ª imagens).

Ao marcar estes vestígios nas minhas plantas de trabalho, verifiquei que a rua da Alegria na actualidade se encontra mais deslocada para o lado do rio.

Essa transferência possibilitou o aumento do comprimento do conjunto dos edifícios em banda, mas conduziu (provavelmente) à necessidade do corte de alguns troços de muralha (na 7ª imagem uma seta assinala um maciço no edifício entre as ruas da couraça e da Alegria, que pode corresponder ao limite das antigas fachadas da rua).

Esta deslocação da Rua da Alegria poderia, igualmente, ter estado na origem do desaparecimento do tal arco, ou porta, da Alegria, o mais antigo, situado a nascente.

A análise documental da fortificação na Alegria continuou a chamar a atenção para as questões toponímicas e terminológicas, sendo necessário ter em atenção as muitas alterações acontecidas ao longo dos tempos, que deram, por vezes, origem a algumas interpretações menos correctas. E isso aconteceu, principalmente, quando se mantinha o topónimo mas passava a designar outro local mesmo que próximo.

É de facto bastante complicado, pois, para além das alterações terminológicas, a mesma designação podia passar a identificar elementos arquitectónicos diferentes, sendo necessário interpretar o documento para conseguir perceber qual o seu verdadeiro significado.

Felizmente, muitos dos documentos continham referências que permitiram uma identificação segura e as conclusões que tenho vindo a partilhar.

(Cap. 9.1.6. em https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/31013 )

Isabel Anjinho

____________________________-