O riso

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Não vamos – descansem – escrever um ensaio sobre o riso. Ele já está há muito tempo escrito por Henri Bergson que o dilucidou, escalpelizou, lhe pôs chavetas, e o estudou. 

Mas não cuidou de lhe apor uma excepção, daquelas que ajudam a fazer a regra. E a excepção é o riso de Coimbra, que só toma paralelo, embora à escala, com outro produto do sentir português – a saudade. É o “espírito de Coimbra” que traduz situações ímpares, sublinhadas, por isso, por um riso próprio.

Em Coimbra íamos ao cinema para rir. Com o que se passava na tela, evidentemente. Mas também os comentários que uma certa irreverência ditava, que o escuro encorajava, e que o público sublinhava com grandes risos.

Imaginem o que é estar no Teatro Avenida, a ver um filme histórico sobre Napoleão. O corso dissertava aos seus soldados sobre as vantagens de termos uma Europa Unida.

- Que direis vós, soldados de uma Europa Unida, só com uma nação, só com um governo, só com uma bandeira, só com uma moeda ...

À deixa, suspensa da banda sonora, a resposta de um estudante não se deixou de ouvir.

- Pois é, só com uma moeda, andava o resto da malta toda tesa ...

De outra vez apareceu na tela, generosamente decotada, creio que a Sofia Loren. O Teatro Avenida que tinha sido construído para redondel de circo, tinha a geral muito chegada ao ecran, que via apenas de soslaio. Lá em cima num galinheiro de segunda, terceira, ou quarta ordem. Mas, como era baratinho, para lá iam os estudantes em vias de desenvolvimento.

Face à desenvolta rapariga da tela, e à profundidade do decote que trazia no vestido, lá de cima se ouvia a voz:

- Eh malta, daqui de cima vê-se tudo.

Mas estas situações cinematográficas, para o gaúdio das vésperas de feriado, puderam ser inversas.

E o foram no dia em que o grande cómico francês Fernandel visitou a república com toda a propriedade chamada Boa Bay Ela. Como a visita a estados soberanos, com fronteira delimitada, aduana, e orçamento próprio, causam alguma perturbação de estranho, ou estrangeiro, Fernandel apresentava-se estranhamente circunspecto.

Começou o francês a sorrir quando o foram tratando por Don Camilo, a saber se tinha trazido a sotaina, e a ser perguntado pela saúde de Pepone - o adversário comunista, e concorrente à liderança da sua comunidade paroquial. Ficou a saber que todos tinham visto os seus filmes, alguns teriam mesmo a vontade de dar umas marretadas no bom Pepone, e todos gostariam de ter por conselheiro ao Cristo que estava na igreja da sua paróquia italiana.

Mas pior foi o resto. Reassumiu-se a solenidade depois de um ágape com o material comestível, e bebestível (neologismo, vid. cartazes da C. P.). É que se tratava de descerrar uma lápide, que se encontrava escondida por detrás de uma capa negra de estudante.

Num francês detestável, mais próprio de um beduíno, mais de um bei que de um bay (que era nome dos repúblicos dali) foi saudado pelo respectivo presidente, o mor. Seguiu-se o puxão ao cordel, à boa maneira das inaugurações oficiosas.' Depois foi o espanto. A placa rezava simplesmente assim:

 

lci a ri Fernandel

 

É que ele riu primeiro, desatou em gargalhadas, e nunca mais parava de rir. Foi a retribuição a quem, também, nos fazia muito rir.  

João Conde Veiga

Em COIMBRA PARA SER COIMBRA

(Editora Logos)