O GAJO E O ABELHÃO

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O gajo estava sentado num sofá velho, arrumado junto da parede de uma sala rodeada de caixas. Em torno dele espalhavam-se mais uns tantos pequenos móveis fora do sítio. Aquilo não era bem o caos, mas andava tangente a ele. O gajo, naquele momento matinal, emborcava uma garrafinha de Ucal de chocolate e ainda mais umas quantas bolachas de água e sal, que haveriam de fazer as vezes de um pequeno almoço improvisado.

Estávamos no fim da primavera e entrou-lhe uma espécie de abelhão escuro pela janela , sempre a fazer bzzz, bzzz, bzzz. O gajo olhou o bicharoco e rosnou "mas que mal fiz eu a Deus para aturar insectos filhos da puta?". Mas logo se lembrou de S. Francisco de Assis, para justificar o insecto e dos perigos de uma ferroada para o amaldiçoar. "Aí está, aí está," - pensou o gajo - " isto demonstra que é sempre possível, neste mundo depravado, sustentar uma opinião e a sua contrária. O Santo de Assis, pois, e o filho da puta , o irmão bicharoco ou lá o que é, fica logo justificado ; mas lança-se a manápula à medicina e , pumba, o caraças do besouro, abelhão ou lá o que é, fica logo amaldiçoado".

Pensou tudo isto, ou melhor, conversou com tudo isto consigo mesmo enquanto ia rilhando as bolachas de água e sal, que misturava com os golinhos de leite Ucal, sorvidos, melhor dizendo, mamados directamente na garrafa. Pelo sim, pelo não, foi seguindo com a vista o espécime volitante e só mudou de alvo quando o mesmo, depois de planar mais um tempo pelo espaço da sala se deveria ter chateado, acabando por sair pela janela por onde entrara.

Contemplou as caixas com desalento. Diacho, uma mudança era uma chatice das grandes. Sabia lá ele agora onde estavam as fronhas dos travesseiros, ou os copos lapidados ou até mesmo o comando à distância da televisão ...

O gajo contemplou, muito embaçado, a quinquilharia do mobiliário e voltou a regougar para dentro de si : " Uma casa de meninas está , em regra, melhor arrumada do que esta coisa". Mas logo acrescentou, "bem, é conforme a "principal" ... A Dona Esmeralda era uma "directora" esmeradíssima. E boa compincha, por sinal. Lembrou-se de que, quando era mais novo e o corpo lhe puxava para a "dança" , era sempre a Dona Esmeralda que , muito maternal, lhe segredava : "Escolhe hoje a Ricardina, que a pobrezinha anda a precisar de arrimo e irá ser muito carinhosa" . Ou então: " Evita a Ritina -Ritona, que essa anda com os azeites e ainda te pode dar uma joelhada nas partes". Abençoada e pontifícia Esmeralda, sempre zelosa pelo bem-estar da clientela.

Estava ele nisto e o famigerado besouro, ou abelhão, ou a puta que o pariu, voltou a entrar ... bzzzzz, bzzzz, bzzzzz. "Porra", disse o gajo, "já nem a memória das putas salva um homem. Isto é, de certeza, o resultado da poluição do meio ambiente".

Não esteve para se incomodar mais. Vestiu o casaco, olhou uma última vez para o chinfrim dos móveis e para os circuitos aéreos do bicho, e saiu de casa.

O pretexto foi o de que iria comprar cigarros. 

Art by: Salvador Dali - Sonho causado pelo voo da abelha

Amadeu Homem