O BURRO DE COIMBRA QUE CAMILO CASTELO BRANCO ENCOMENDOU AO SEU AMIGO ADELINO DAS NEVES E MELO

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 Há alguns dias reproduzi as quatro cartas de Camilo Castelo Branco dirigidas, em Março e Abril de 1886, de S. Miguel de Seide, ao seu maior amigo dos tempos da sua segunda permanência em Coimbra (1875/1876), o Dr Adelino das Neves e Melo, pedindo-lhe que lhe arranjasse, para os seus passeios recomendados pelos médicos, um burro como só em Coimbra havia.

 

Recorri, para esse efeito, às cartas publicadas por Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, em "Dois Capítulos sobre Camilo Castelo Branco", Imprensa da Universidade, Coimbra, 1922.

 

Descobri agora uma primorosa edição das mesmas cartas (Edições ASA, Porto, 2000, com gravuras de Alberto Péssimo, direção gráfica de Armando Alves e prefácio de Vasco Graça Moura), que reproduzo.

 

Para completa compreensão da última carta de Camilo, convém recordar o que diz Adelino das Neves e Melo ("Camilo Castelo Branco", Portugália Editora, Lisboa, 1928, p. 14, reproduzida da 1.ª edição de "Senilia", Pará, 1899):

 

"Voltou para Coimbra o lúbrico solípede, e eu disse a Camilo que, à vista das manhas do onagro, só lhe poderia assegurar a mansidão de uma burra cega de um olho, que exercia na minha quinta o humilde mister de tirar água de um poço, e terminou a nossa correspondência a semelhante respeito com a carta que se segue: [carta de Camilo de 26/4/1886]."

 

A sequência da correspondência é a seguinte:

 

I - Carta de Camilo, de 19/3/1886:

 

"Meu prezado Amigo,

Se for capaz de ler esta carta sem se rir, está V. Ex.ª à prova do humorismo indígena.

Os meus médicos, suspeitosos de que as minhas pernas vão paralisar, mandam-me dar passeios a cavalo.

Eu tenho um, como recordação de bons tempos, mas já não me atrevo a montá-lo. Aconselharam-me a equitação em burro, pacífico, sem manhas, nem erotismos muito violentos. É impossível encontrar no Minho um burro em tais condições, porque, alguns que ainda existem, são abades. Mandaram-me procurá-lo no campo de Coimbra, onde permanece ainda a raça do burro espirituoso e meio académico da Mealhada e dos Fornos.

Lido isto, V. Ex.ª encarrega um dos seus carreiros de me comprar um jumento, nas condições terapêuticas acima referidas – burro que não exceda 6 ou 7 libras. Apalavrado que esteja, envio a V. Ex.ª a quantia que me designar, e o burro vem para Famalicão tomar parte nas minhas contemplações bucólicas por estas montanhas.

Pergunta-me agora V. Ex.ª em que ponto da carta lhe cumpria rir-se? É na estouvanice de o ir distrair das suas leituras pedindo-lhe que me compre um burro.

Vou ler o seu livrinho, na certeza de que encontro novidades.

Peço-lhe a fineza de depor aos pés de sua Ex.ma Esposa os meus respeitos."

 

II - Carta de Camilo, de 8/4/1886:

 

"Meu Ex.mo amigo,

Vejo que é mais fácil encontrar aí e aqui uma dúza de viscondes do que um burro regular. Talvez se desse a evolução darwinista. A gente vê passar o visconde e não vê o burro incluso. Requer-se o olho cientifico, experimental que V. Ex.ª não tem nem eu.

Muito lhe agradeço o resultado das suas pesquisas. Hoje deve V. Ex.ª receber um vale de 24$ rs para pagar o meu companheiro de excursões e travessias por estas serras.

O burro queira V. Ex..ª enviar-mo pela via férrea. Não vejo melhor meio de transporte, nem deveremos esperar a navegação aérea, salvo se V. Ex.ª vir que ele, batendo as asas do génio, pode esvoaçar até aqui, como o negro melro da cantiga. V. Ex.ª terá a bondade de me avisar do dia em que o ilustre peregrino chega a Famalicão para as autoridades o cumprimentarem na gare.

(...)."

 

III - Carta de Camilo, de 20/4/1886:

 

"Meu prezado Amigo e Ex.mo Sr.

Cá está o onagro. Não o posso ver porque estou de cama com reumatismo; mas ouço-o ornear valentemente. Desde Famalicão até aqui, não obstante ter passado mal a noite, revelou fúrias lascivas, dom-juanescas, a cada fêmea que encontrava. Logo que chegou, investiu para dois garranos que tenho. O diabo tem dentro dele o que quer que seja do Marquês de Valada. Parece mesmo um cristão! Meu filho Nuno veio dizer-me à cama que não consentia que eu o montasse (o burro) enquanto lhe durasse a crise erótica.

Assim farei para não ser vítima de paixões que me escangalharão a mim, sem ser de todo burro.

Remeto-lhe, meu prezado amigo, 2:250 rs. Vão inclusos nessa quantia fabulosa os telegramas apensos ao burro."

[O lascivo burro deve ter sido devolvido à sua pátria Coimbra, como se deduz desta última carta]

 

IV - Resposta de Adelino das Neves e Melo:

 

"Voltou para Coimbra o lúbrico solípede, e eu disse a Camilo que, à vista das manhas do onagro, só lhe poderia assegurar a mansidão de uma burra cega de um olho, que exercia na minha quinta o humilde mister de tirar água de um poço, e terminou a nossa correspondência a semelhante respeito com a carta que se segue:

 

V - Carta de Camilo, de 26/4/1886:

:

"Meu prezado Amigo e Ex.mo Sr.,

Como suplemento às notas diplomáticas sobre o burro, salvo seja, vai esta como recibo das 5 libras, reis 22$500.

A posteridade, além de ver que fomos de boas contas, maravilhar-se-á vendo quais eram as preocupações de dois escritores assaz metafísicos. Se V. Ex.ª conservar esse paquiderme, e ele render o espírito em sua casa, peço-lhe que o embalsame e lhe ponha entre as orelhas a nossa correspondência. Ele fez gemer os arames do telégrafo, e prometia fazer-me gemer com as costelas fracturadas. Oxalá que a final V. Ex.ª não seja vítima desse burro e nunca lhe sacrifique a dedicada jumenta do olho único."

Mário Torres