NOVA AVENTURA DO CAJADO
O problema que se me colocava era trazer para Coimbra uma parte das seis bengalas e um cajado que comprara em Lisboa. Já vos disse que tomara a decisão abençoada de colocar tudo numa despensa, ao lado de um Mártir S. Sebastião que eu quebrara em circunstâncias infaustas. Pareceu-me pouco cristão ameaçar o sacro Santo com a companhia, pouco sacrossanta, de seis bengalas e um cajado.
Decidi então que levaria para Coimbra três bengalas e o cajado, ficando em Lisboa a restante demasia. Sobrecarreguei a mala de coisas, desmontei as bengalas, que estavam concebidas para se desaparafusar, mas nada pude fazer quanto ao considerável e grosso cajado. Entendi disfarçar, servindo-me dele como se fosse uma bengala vulgar, destinada a proteger o meu considerável cavername dos ventos desabridos das artrites e das vagas alterosas dos reumatismos joelheiros.
Era portanto, quando saí do meu refúgio lisbonense, apenas mais um velho, com uma mala-troley . Supunha eu que era tal. Mas não era nada disso. O cajado modificava radicalmente a natureza das coisas. Tive disto a percepção quando passei à porta do encadernador que tem o seu estaminé lá na rua. Ele já me vira, em várias situações e com metereologias heterogéneas, cruzar-lhe a porta, tendo eu verificado que o esforçado mesteiral mal me olhava, todo enfronhado nos seus ferros de encapar e nas suas colas regimentais. Mas daquela vez em que eu transportei o cajado, o modesto profissional interrompeu tudo o que estava a fazer , e correu para a porta, de olhos muito abertos. Eu disse-lhe "bom dia" , sem receber retoma. O olhar dele não se despregava do avantajado pau recurvo que eu transportava numa das mãos. Alcançado o começo da rampa, só o ouvi murmurar, como se falasse para os seus botões : "Ele há coisas ... " e voltou a proteger-se no cubículo.
Arrastei devagarinho a mala-troley, segurei triunfalmente o meu cajado, passei ao lado da pastelaria e , inadvertidamente, choquei com duas inglesas de calções, com pares de pernas manifestamente brancos em demasia e talvez já fora do prazo de validade. Nuca me senti tão mal perante estrangeiras, pois uma delas, apontando o pau ( do cajado, evidentemente) , disse, escandalizada para a outra : "Shocking ... oh my God" . Depois, quase que correram para ganharem distância em relação a mim e ao cajado. Ignorei-as completamente, puxando o mais que pude pelo meu patriotismo e pela lembrança do Ultimato de I890. Postei-me então no passeio, ali mesmo onde acaba a enxurrada dos turistas, e aprontei as coisas para fazer parar um táxi. Pouco tive de esperar. O primeiro dos táxis era uma daquelas viaturas imponentes e enormes, a tresandar ao século passado, de marca Mercedes, salvo o erro. Era guiado por um homem de boné cinzento e de bigode branco, com todo o ar de praguejar com o excesso de trânsito e com os malefícios da concorrência. Quando o embigodado me viu, a face iluminou-se-lhe num sorriso e o automóvel abrandou. Foi nessa altura que eu cometi o erro de erguer na mão o cajado, com o mesmo em riste a apelar por paragem. O motorista teve precisamente a mesma reacção das inglesas. Mal viu o porte colossal do cajado, sumiu-se-lhe toda a bonomia, varreu-se totalmente o esboço de sorriso, e o homem acelerou o mais que pôde, desaparecendo no horizonte.
Eu fiquei naquele passeio, especado, vencido, vexado e a perguntar baixinho: - Mas então como é que eu me hei-de arranjar para me fazer transportar a Santa Apolónia ?
Imagino que, dentro da despensa, o Mártir S. Sebastião estivesse a rebolar-se de gozo.
Amadeu Homem