De costas voltadas

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O Cemitério da Conchada inaugurado em 1859, é um dos mais tradicionais e antigos de Portugal. A sua execução tornou-se necessária, após a proibição de enterros em igreja, capelas e descampados e a obrigatoriedade da construção de cemitérios municipais, normas essas vertidas em decretos de 1835 e 1844.

Começou por ser uma insipiente tira de terreno, sem organização urbanística e os primeiros enterros no novo cemitério, foram destinados apenas a sepulturas.

Com o arruamento do cemitério surgem obras de arte de pedra e ferro, tal como sucedia nos mais cosmopolitas cemitérios do país tornando-o mais digno e moderno.

Apesar de ter recebido fortes influências de arte sepulcral oitocentista dos cemitérios do Norte, o Cemitério da Conchada foi um dos poucos do país que logrou desenvolver estéticas muito próprias pelas mãos dos canteiros da escola Coimbrã: João Machado e Alberto Caetano.

Das suas oficinas saiu a maioria das obras de arte que povoaram os novos espaços, destacando-se num leirão, duas lápides idênticas encimadas por bustos, a uma distância de pouco mais de vinte passos, estranhamente viradas de costa entre si.

Na peanha do busto de uma pode ler-se:

Basílio Ribeiro Leite de Sousa Vasconcellos - «Estudante do 2° anno jurídico em 1873 a 1874». «Os teus condiscípulos lembrar-se-hão eternamente de ti.», 

e na outra:

Gil d'Oliveira Pontes — «Estudante do 2° anno jurídico em 1873 a 1874». «Os seus condiscípulos». «Trabalhaste entre nós, cahíste a nosso lado bem cedo para os teus».

Estas lápides foram encomendadas ao escultor Possidónio da Silva Alves Brandão, por um grupo de estudantes da Faculdade de Direito pretendendo prestar homenagem a dois colegas e amigos que viram desaparecer do seu convívio.

O facto de estarem de costas, criou uma enorme curiosidade, presumindo-se ter acontecido um duelo entre os dois.

Se houve duelo qual o teria pedido? Teria sido por uma questão de honra?

Foi esta a dúvida que passou ao longo do tempo…

Na verdade, houve uma jovem no meio da história. Cristina amiga dos dois, apaixonada por um e que assistiu consternada ao desaparecimento de ambos.

Basílio Vasconcellos, natural de Felgueiras, em Coimbra habitava na rua da Trindade, 55 onde com 22 anos, vítima de tifo, deu o último suspiro no dia 22 de Fevereiro de 1874 na presença de sua mãe D. Ana Leite de Faria e do olhar sofredor de Cristina, o seu grande amor.

No dia seguinte, realizou-se o funeral até ao Cemitério da Conchada, sendo o cadáver acompanhado pelos seus mestres, por outros lentes e por mais de 600 académicos.

Gil Pontes natural de Grijó, morava em casa da Isabelíssima na Travessa da rua do Norte, 18, onde os hóspedes eram tratados como família. Foi aí que acamou com uma pneumonia, agravando-se rapidamente, até que no dia 7 de Maio do mesmo ano deixou de respirar. O funeral aconteceu no dia seguinte, 8 de Maio de 1874, dia que em que Coimbra se comemorava o aniversário da entrada das forças liberais do Duque da Terceira na cidade, não impedindo esta comemoração, o grande acompanhamento de condiscípulos, mestres e amigos até ao cemitério.

Tal como já o haviam feito para homenagear os seu amigo e condiscípulo Basílio Vasconcellos, repetiram-se as intenções e efetuar idêntica homenagem, encomendando ao mesmo escultor Possidónio Brandão, a execução de uma lápide com o busto de Gil Pontes.

Reuniu a comissão promotora, para deliberar sobre o local da colocação da lápide de Gil no cemitério.

Dizia um que, devia ficar ao lado da do Basílio; outro entendia que seria bom ficar tão próxima quanto possível.

Explicou um outro que entre os dois houve um período negro porque se sentiam apaixonados pela mesma mulher. Nesses tempos, Basílio andava de amores com Cristina, e na cabeça de Gil era dele que ela gostava. Esta louca ideia chegou aos ouvidos de Basílio decidido este defender a honra da sua amada e ter desafiado formalmente Gil Pontes para um duelo. Foi um período negativo, mas o certo é que, entre eles, houve ainda mais amizade do que antes.

Este duelo não foi ignorado, efetivamente ele aconteceu. Cristina esforçou-se para que se encontrasse uma solução e a melhor pessoa para o fazer era então João d’Oliveira Penha. Um poeta, veterano e rei da boémia, com sabedoria de mestre, propôs que se deviam bater com armas dignas da academia.

E assim aconteceu, bateram e bem num autêntico e civilizado duelo, ferindo-se um ao outro com o arremesso de versos cheios de intensões cortantes como lâminas. Atiraram um ao outro palavras afiadas, repassadas de dor e com intenção de molestar e derrubar.

Atendendo a tudo o que foi ouvido, ficou deliberado, por unanimidade que os dois bustos, ficariam perto um do outro, de costas voltadas, sugerindo o duelo de amor que os uniu na vida sob o olhar dos admiradores e amigos eternos.

E de costas voltadas, ficaram!

Carlos Ferrão