Com Louzã Henriques, sempre!
29 de julho, fez um ano que partiu Manuel Louzã Henriques, psiquiatra de profissão, etnólogo por devoção.
Antifascista íntegro, rijo como o xisto serrano de onde veio a sua fibra de resistente que conheceu as cadeias da ditadura.
Clarividente e ativo observador, também, dos caminhos sinuosos de uma democracia autofágica, que morre de cada vez que uma voz dissonante é desprezada, escorraçada ou mesmo perseguida pelos vendilhões do templo.
Louzã era meu amigo e meu mestre!
Nunca lho disse, nem era preciso.
Ele sabia perfeitamente que eu me considerava seu discípulo (seguidor curioso, mas não reverente) pela identificação emotiva e interessada com a Serra da Lousã, onde mergulham as nossas raízes comuns.
Mas por muito mais.
Os pastores de cabras, os tocadores de concertina, os brasileiros e americanos de torna-viagem e os que pereceram no outro lado do Atlântico (ricos ou não, donos de investimentos milionários ou afogados no álcool), os cavadores de mãos gretadas que ficaram nas encostas, a cultura, a música, os costumes, a arquitetura e a gastronomia da montanha pátria povoaram muitas das nossas longas conversas, tranquilamente, noite fora, onde quer que fosse.
Temos, afinal, costelas irmãs na Serra da Lousã.
Ele no Candal e no Coentral.
Eu nas Silveiras e noutros lugares vizinhos.
Em 26 de outubro de 2019, coincidindo com o meu 60º aniversário, Louzã Henriques, a par de António Arnaut e José Mário Branco, foi uma das figuras, públicas ou menos conhecidas, a quem dediquei o meu quarto livro: “Pessoas, Pensamentos e Palavras” (PPP).
Entre outros textos em sua homenagem, a obra inclui a crónica “Eu pago à terra em morrendo”, que primeiro foi publicada em 1 de agosto, no jornal Trevim, da Lousã.
Eis a prosa:
Eu pago à terra em morrendo
«Vida intensa entre Castanheira de Pera, Lousã e Coimbra.
Serra acima, como Sísifo, a empurrar o penedo que teima em resvalar, num mundo onde a esperança mora paredes meias com a luta.
Tempo para resistir, tempo para cuidar e tolerar.
Noites inteiras sem dormir.
Oitenta e cinco anos, quase 86, de caminhada a passo firme!
Dias e noites para trabalhar, estudar e conversar.
Em Coimbra, muito jovem, Manuel Louzã Henriques abraça uma guitarra de doutores que, afinal, é também de povo futrica, os salatinas e os demais.
No horizonte musical mondeguino, irmanadas na diferença, desfilam como sombras chinesas, doces, as vozes de Hilário, Menano, Bettencourt, Zeca e Adriano.
Não falta a Louzã Henriques tempo para rir.
Mas tem fortes razões para gritar.
E algumas para chorar, por que não!
“Meti-me em sarilhos, mas também tive grandes barrigadas de riso”, afirma, em 22 de junho de 2013, na apresentação do livro “Manuel Louzã Henriques – Algures com Meu(s) Irmão(s)”, concebido em sua homenagem, por Manuela Cruzeiro e Teresa Carreiro, e que inclui testemunhos de um punhado de amigos.
Kinito, palhaço bem-humorado falecido em 1982, sobe sem esforço ao palco das suas ironias.
Homens e mulheres da pele do diabo protagonizam histórias de pasmar do viageiro da Serra da Lousã.
Sonhador, libertário das alturas, navega agora nos céus da fraternidade universal.
Ele que tem o brevê de aviões desde a juventude, mas não viaja de metro no subsolo das cidades!
Talvez reinventados, nunca traídos, Marx e Lenine sustentam-lhe a jornada redentora em busca do homem novo.
Nos anos 50 do século XX, logo que desce da montanha pátria, onde o xisto, quase fraternalmente, acolhe o granito no regaço, em inesperados afloramentos, pão de cada dia dos canteiros suados do Coentral natal, na Castanheira de Pera, guarda uma guitarra no quarto da República Palácio da Loucura.
Perseguido na flor da idade, é preso quando Aljube e Peniche são palavras pesadas como o chumbo no léxico fascista.
“A minha mãe ensinou-me a não brincar com os cães grandes e eu não lhe fiz a vontade”, graceja, há seis anos, no auditório do Conservatório de Música de Coimbra, antes de tocar concertina e guitarra para mais de 500 amigos e amigas presentes no tributo memorável.
Um dia, estando o futuro psiquiatra na cadeia, em aflições que recomendam eventual recurso à Senhora das Pressas (a verdadeira nas horas de aperto, não a das Preces, segundo o próprio!), a mãe, perante o marido, chora a sorte do filho encarcerado por razões políticas.
“Olha que um homem tem os seus compromissos”, justifica Diamantino Henriques, ex-emigrante regressado dos Estados Unidos.
Neste mundo tudo se paga, parece dizer a Brigada Victor Jara, no LP “Quem sai aos seus”, no fado corrido da Serra da Lousã, tantas vezes tocado por Manuel na sua concertina:
Eu sou devedor à terra
A terra me está devendo
A terra paga-me em vida
Eu pago à terra em morrendo».
Casimiro Simões
Foto de Luísa Sales (Restaurante Portas Largas, Lousã, 24 de novembro de 2018)