COIMBRA

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Toda a Coimbra era como uma freguesia. A torre sineira debitava sons - mais agudos uns, mais rachados outros, tilintantes ou vagarosos conforme os avisos. A torre, emergindo do casario, comportava-se como se fosse um minarete alvacento, ou torre de igreja que tocava as matinas, as vésperas ou as trindades.

A vida, assim comandada, era como se fosse a vida de aldeia. E todos conheciam a todos, e andar pelas ruas era o desfiar contínuo de saudações e de

paragens.

As rimas das coplas que entoavam eram campestres e fáceis - o sino que dobra é estudante que morre de tristura, o Mondego a correr fá-Io com sossego, e quando toca a capêIo é de ir-se vê-Io. Rima e é verdade.

O sino, lá no alto, comporta-se como um bordão de guitarra portuguesa, e quantas vezes o som sabe a balada de despedida. É que em Coimbra começa a gente e despedir-se logo que chega, ou como o rio que vai. A paisagem é lenta como o Mondego correndo. Mas quando repica a capêlo, no ar de festa que lhe empresta um novo doutor, é mesmo de ir vê-Io.

Neste último caso - como quase tudo o que diz respeito a actos, a aulas e a lentes - as rimas já não serão tão fáceis, nem os ambientes serão tão poéticos.

Pois como se saberá, Coimbra é uma ordem do universo estabelecido, onde apenas os movimentos dos astros se podem surpreender lá do fundo da esplanada universitária, na muda companhia de um sólido, empedernido D. João lII, que bem poderia passar por Henrique VIII a esturgir mulheres. Neste universo estabelecido, qualquer pedrinha da calçada da Sé Velha que se mude, e logo se dará conta. Quanto mais uma eterna página de sebenta, que tanto custou a um lente fixar definitivamente em escrito para deleite (julgava
ele) dos seus alunos.

Portanto, ir a capêlo, tem em Coimbra uma significação concisa. Pois se trata de um alamar que circunscreve o peito e o pescoço dos laureados doutores. Que é encimado e completado por uma espécie de quico árabe ornamentado por uma miríade de missangas da cor da faculdade.

Chama-se borla e em Coimbra é uma espécie de livre trânsito tácito. Assim como no dialecto napolitano "portughese", por obra e graça de uma antiga embaixada manuelina, quer dizer o que vai a todo o lado sem se preocupar se saber o preço da entrada, assim também a borla dá a entrada directa na vida social coimbrã sem se perguntar porquê. O que demonstra deveras a importância da Universidade perante a cidade que anda a toque da sua torre sineira.

Pois esta situação geográfica, pois esta importância de capêlo, é também uma

situação tão imutável como um códice medieval. Isto, enquanto os copistas ainda não o alteraram.

Imagine-se que um destes, entretenido na faina do debuxo de uma capital, começava a trocar as letras dentro das palavras. E que trocava o p pelo b, o que é coisa inteiramente possível, dada a fonia, e até a posição da perna que prolonga o bojo da letra. Sairia como é óbvio, sala dos cabêlos, que foi o nome que os estudantes puseram a um salão dos ditos e de barbas, que ficava na derribada Rua Larga. Onde pontificava a técnica e a ciência de um redundante Sr. Coimbra a que Octaviano de Sá chamava, pela sua fluência e ensino de novidades, de "catedrático". E donde saíam, espanejados e leves, nos últimos modelos de corte, os novos doutores que, em fornadas, iam espalhar ciência por esse Portugal de lés a lés, quando não às Áfricas ou Brasis, onde se falasse o português.

Mas seria desastroso, e muito pior que fosse, se a mudança literal se exercesse

a trocar o p, de capêlo, por um m a meio da palavra. Passaria a ser um desastre e a enorme gralha seria de sala dos camêlos.

Se é que alguns por lá não pastaram.

João Conde Veiga

Coimbra para ser Coimbra

Logos Edições, Ld.ª. págs.-5 e 6