CASAMENTOS EM COIMBRA:
O NOIVADO DO NUNES DE RANHADOS (ABRIL DE 1930)
I - O ANÚNCIO
O caso começou, como o do “Casamento do Vegetariano” (1916), com a publicação de um anúncio num jornal. Desta vez, no jornal “Distrito de Viseu”, edições de 15 e 17 de Fevereiro de 1930, com o seguinte teor:
“CASAMENTO.
Cavalheiro, de 23 anos de família alguma coisa fidalga, com alguns meios de fortuna, empregado de estabelecimento industrial, deseja senhora com 20 a 23 anos, com os requisitos necessários e dizer de sua fortuna.
Carta a esta tipografia a A.B.”
II – A MENINA ALICE MOSTRA INTERESSE
O anúncio foi lido “com o maior interesse” em Coimbra pela menina Alice Amélia Torres, “de 22 anos, herdeira de Pai e Mãe”, com “fortuna, em dinheiro e propriedades, avaliada para efeitos de partilhas em 230 contos”. Vivia “na companhia de minha querida avó paterna, de um irmão de 18 anos, estudante do Liceu, de um tio e de um primo”, mas queria ver-se “livre de imposições de família que tanto repugnavam, sob o ponto de vista afectivo, à minha maneira de ser”. Apesar de ciente dos “perigos e inconvenientes de toda a ordem a que está sujeita uma rapariga verdadeiramente digna desse nome quando um rapaz se lhe dirige declarando-lhe o seu amor e, principalmente, como no especial caso de V. Ex.ª, quando é ela que tem de fazer essa declaração”, resolve responder ao anúncio, que “desde logo me seduziu e cativou” pela “maneira original, franca e extremamente simpática como V. Ex.ª pretende resolver o problema do seu casamento”, e confiando “absolutamente na sua hombridade”, que “não quererá, certamente, rir-se ou zombar da sinceridade e inocência duma pobre rapariga que os cuidados e desvelos da família tornaram credora do maior respeito e amor-próprio”.
III – O SENHOR NUNES APRESENTA-SE E QUER ENCONTRO
O Senhor Nunes não perde tempo: apresenta-se - “sou encorpado e branco” - e quer marcar encontro para 9 de Março ao meio dia. Como não conhece a cidade de Coimbra, a menina Alice devia “vir à estação, na companhia do seu irmão e da sua avó, porque não pode vir só”, “para nos vermos e termos falas declarantes”. À cautela, a menina deve levar esta carta dele, porque, “se não combinarmos nada, dou-lhe a sua e a Sr.ª dá-me a minha”.
IV – A MENINA ALICE ACEITA O ENCONTRO
A carta do Sr. Nunes deixou a menina Alice “em tão profunda alegria que chego a imaginar que tudo isto é um sonho”. Não esconde que “tenho medo das línguas do mundo”, mas “se chegar a realizar o casamento com V. Ex.ª, possa crer que serei a mais feliz das mortais”.
V – O SENHOR NUNES RECOMENDA CUIDADO E SIGILO À MENINA ALICE
“Tenha muita cautela com várias pessoas, e principalmente com homens”, pois, “se nos contratarmos quero viver com gosto e descanso”.
VI – A MENINA ALICE PROMETE RECATO MAS QUER INFORMAÇÕES
“Guardarei absoluto segredo sobre tudo o que se passa”, mas como “não estou disposta a casar-me com um homem que ainda não sei bem quem é”, tem “muito empenho em saber informações do meu futuro marido”. Não é que duvide da sua honestidade, mas porque “recebi muita educação dos meus queridos e chorados pais, ofenderia a memória deles se um dia tivesse de cair numa fatalidade, o que pode acontecer a uma menina que vive como eu, órfã e num meio de rapazes, como é este de Coimbra”.
VII – O SENHOR NUNES ADIA O ENCONTRO, APRESENTA-SE E QUER MAIS
INFORMAÇÕES
Um estorvo forçou o Sr. Nunes a adiar o encontro de 9 para 16 de Março. Apresenta-se: “sou da Quinta de S. Caetano, freguesia de Ranhados, concelho de Viseu”. Anuncia os seus propósitos: “Eu só queria enlaçar-me no fim deste ano ou no princípio do ano que vem”. Quer saber mais informações da menina Alice: “tem tido e quer ter sempre o bom porte com respeito a homens e dar-se ao meu governar; e diga-me também se é branca ou morena, gorda ou magra e mais ou menos a sua altura” e “se a menina é saudável”.
VIII – SEM RESPOSTA DA MENINA ALICE, O CORAÇÃO DO SR. NUNES CHORA MAS INSISTE
“Tenho estado todos os dias à espera de carta e até à data nada. Meu coração chora com pena da menina e não chega a ter alegria para se satisfazer. Tem pressa: “Eu com a idade que estou preciso de me mexer; e assim estou à espera e nada vou vendo”. Pede fotografia ou a devolução das cartas.
IX – RESPOSTA A CARTA DA MENINA ALICE EM QUE ESTA PEDE FOTOGRAFIA DO SR. NUNES E QUE VENHA DEPRESSA A COIMBRA. O SR. NUNES DITA AS REGRAS: “QUEM MANDA SOU EU”
“Com respeito à fotografia não lha posso mandar sem a Sr.ª mandar a sua”. Não está disposto a repetir idas a Coimbra, porque “eu para ir aí gasto muto dinheiro e estou vendo que ficarei no rol dum estragador!” Quando for a Coimbra, em data que marcará, ela que espere por ele “na primeira estação de Coimbra (indo daqui para aí)” [a Estação Velha]. “Lá nos falamos e não irei mais adiante; [a menina] tem eléctrico e melhor pode lá ir”. “Peço-lhe para crer que eu a peço a sua avó, para casamento que deverá ser findo em Março de 31”. Decreta logo as regras do contrato: “quero viver em Viseu ou onde eu quiser e que a Sr.ª tem de se me dar em tudo ao meu governar. Quem manda sou eu. (…) Dê-me resposta à carta do dia 9 e restantes: responda-me a tudo e mande-me a sua fotografia, mande-a tirar já e mande-me já na carta; responda ao que lhe pergunto (…) Se os médicos a mandarem casar ou haja outro estorvo eu caso-me já mas é se me convier. Tenha todo o juízo; quero que sempre se tenha conservado e fique sempre sendo minha até a eternidade e não de pessoa nenhuma sem ser eu. (…) Eu não me caso com separação de bens fique certa. (…) quero trabalhar só mais uns 20 anos pouco mais ou menos. A Sr.ª não diga ou para melhor não esclareça ao certo a sua fortuna. Termos e não demonstrarmos aquilo que temos…”
X – A MENINA ALICE ABESPINHA-SE
“Senhor Manuel, Francamente que não o compreendo e deixe-me dizer-lhe que tenho a impressão que o sr. anda a brincar comigo”.
XI – O SR. NUNES TELEGRAFA
“Vou hoje comboio chega aí 2 horas noite.
Nunes”
[Familiares da menina Alice foram espreitar à Estação Velha, viram o Sr. Nunes chegar de sobretudo no braço e maleta na mão, mas, como não visse ninguém, apanhou o comboio seguinte de regresso à procedência]
XII – A MENINA ALICE TELEGRAFA
“Só hoje recebi telegrama motivo porque não fui estação.
Alice.”
XIII – O SR. NUNES COMEÇA A DESESPERAR
“Está a pôr-se tão ensalsado o nosso contrato … vai quase a parecer uma brincadeira”. Adia a entrevista para o segundo domingo de Abril. “A menina parece-me fraquinha”. “Responda já que estou ansioso”.
XIV – ALICE INCONSOLÁVEL, VERTE LÁGRIMAS QUE MAIS PARECIAM PINGOS DE CHUMBO
“A sua carta veio dizer-me que V. anda a troçar-me”. “Parece mentira que o Manuel, sabendo que eu sou uma rapariga órfã e exposta a todas as agruras da vida, pretenda divertir-se comigo, como se eu fosse uma palhaça! A sua última carta fez-me verter copiosas lágrimas que mais pareciam pingos de chumbo que me magoavam o rosto e o colo. A nega do retrato que lhe pedi muito me entristeceu! Manuel, tenho estado de cama e o termómetro tem marcado 39 graus! Tenha pena de mim e não me faça sofrer mais. (…) A inconsolável Alice.”
XV – NUNES MARCA O ENCONTRO. PARA O RECONHECEREM LEVA UMA CARTA NA MÃO A DAR-A-DAR.
“Aí vou na quinta-feira de manhã. Levarei a fotografia que pessoalmente lhe dou se nos contratarmos. Levo uma carta na mão a dar a dar para me reconhecerem. Não desanime.”
XVI – A CHEGADA DO NUNES A COIMBRA E O ALMOÇO EM CASA DA AVÓ DA MENINA ALICE
Às 11 horas do dia 3 de Abril de 1930 um velho académico devidamente enfarpelado aguardou a chegada do comboio à Estação de Coimbra.
Vislumbrando um indivíduo de tez branca, encorpado, trajando um fato castanho, de sobretudo e malinha na mão direita, trazendo na esquerda uma carta a dar-a-dar, dirigiu-se-lhe e travaram o seguinte diálogo:
“- É Vossa Excelência o sr. Manuel Pereira Nunes?
- Em corpo e alma! … e V. Ex.ª é…
- Joaquim Manuel Vindima e muito amigo da família Torres. Sei já ao que vem e como o tempo é dinheiro, podemos tomar já este carro; mas deixe-me ver a sua malinha…
- Oh! Não. Queira subir. De maneira nenhuma.”
Seguem para a Alta, para a Rua dos Estudos, para onde as cartas do Nunes eram endereçadas, mas uma criada de touca e avental branco informa que a Alicinha tinha saído de manhã com a avó para a missa e ainda não voltara.
Vão à casa da avó, à Rua dos Militares (no prédio onde, por mera coincidência, sediava a Real República Ribatejana), onde, com a ajuda das vizinhas, a sala de jantar tinha sido caprichosamente ornamentada. A Alicinha e a avó ainda não tinham chegado. O Vindima desculpa algum desarranjo na casa por nela viverem rapazes. Nunes é recebido por Henrique, primo da Alice, que o avisa que outro primo (Augusto), um estroina valentão, a persegue. Aproximando-se a hora de almoço, começam a aparecer os convivas: o sr. Neves, funcionário público; o sr. Caramelo, professor primário; o sr. Fagulha, oficial de diligências; o sr. Arinto, polícia de informação; o Zézinho Fagulha, estudante do liceu; o sr. Castro, empregado numa casa de gravatas. Mais tarde chegam o Dr. Pardalão e o tio Gomes, que representa a dona da casa, a D. Maria José, avó da Alicinha, impossibilitada de comparecer por ter ido almoçar a casa da Sr.ª D. Mesquita da Costa.
O distinto advogado Dr. Pardalão [Alfredo Fernandes Martins], numa brilhante oração, fala de Viseu, recorda Viriato, o bispo Alves Martins e outras figuras célebres.
XVII – O NOIVADO
Subitamente, uma voz efeminada: “- A vó-vó dá licença?”
Nunes muda de cor e contempla estasiado a beleza da sua noiva.
Mas uma criada traz um bilhete da avó: “Alice: - Espero que venhas com teu tio ter comigo. Estou em casa da Dona Mesquita. Teu primo Augusto vai buscar-te. Beija-te a tua Avó.”
Uma tipóia espera à porta. O primo Augusto é apresentado debaixo dos olhares ciumentos do Nunes. Os noivos entram para a tipóia, com o tio Gomes e os primos Henrique e Augusto. Com tanta gente à volta, o Nunes mal conseguiu trocar palavras com a nova, pudicamente de olhos baixos.
Perguntada pelo tio se se estava a sentir mal, diz que estava com falta de ar e por isso necessitava de uma chaveninha de chá. Assim, decidem passar antes pela Pastelaria Central, na Calçada.
A rua está cheia de gente. Era a Queima das Fitas e dia de garraiada no Coliseu de Coimbra (onde hoje é o Portugal dos Pequenitos): dia da “festa dos passarinhos”, como explicaram ao Nunes.
É então que são tiradas as fotografias do evento, a primeira todos à mesa, e as outras duas na varanda, onde os noivos assomam satisfazendo o clamor da multidão que se juntara na rua, reclamando o beijo nupcial.
Parece que só à saída, devido aos encontrões, terá caído a peruca da noiva e o Nunes descoberto que o caloiro João Duarte “afinal é um homem”.
XVIII – FINAL FELIZ: O CASAL NUNES TEVE UM FILHO
Mas a história teve um final feliz.
No início de 1931, os jornais noticiavam que no dia 29 de Dezembro de 1930, na Maternidade de Coimbra, a Sr.ª D. Alice Amélia Torres, esposa do conceituado industrial de Ranhados, Ex.mo Senhor Pereira Nunes, tinha dado à luz uma robusta criança do sexo masculino. Apesar de ter nascido antes do termo normal de gestação, o rapagão tinha cinco quilogramas de peso e em tudo se parecia com seu Pai, assim perpetuando a dinastia dos Nunes, “família alguma coisa fidalga”.
Mistérios da Natureza.
Fonte dos textos e das imagens sem outra indicação: "Rua Larga - Revista dos Antigos Estudantes de Coimbra", n.ºs 38 (5/4/1960), 41 (23/6/1960), 42 (12/7/1960) e 50 (28/2/1961).
NOIVADO DO NUNES DE RANHADOS
Queima das Fitas em 1930
Nas últimas imagens deste documentário surge, por instantes, o carro dos noivos.
Legenda: "O Nunes com sua noiva não falta"
NOTA: Este assunto “teve a mão” e o pé da malta d´O Ponney. O assunto foi, na altura, “relatado” no nosso jornal, até porque um dos autores da partida foi Castelão de Almeida Cremos que até foi repetido mais tarde num outro número.
Temos pena de não termos os jornais com os relatos, mas deve encontrar-se algum exemplar na BGUC.
in Mário Torres
http://www.youtube.com/watch?v=Gz08BcEHpEY