ALGO DE BOM NA CIDADE. O RESTAURO DA FONTE DO CLAUSTRO DA MANGA.

Ze-Jardim-da-Manga-Monografia.jpg

A fonte do claustro da Manga do mosteiro de Santa Cruz é uma bela construção e, seguramente, a mais importante da renascença Coimbrã, e das principais dos primórdios da arte do Renascimento, em Portugal, de uma pureza de estilo e de uma erudição, no que diz respeito ao seu simbolismo, raramente ultrapassada, entre nós. A planta centralizada da “Fons Vitae” mostra que o arquitecto já dominava a linguagem da Renascença, particularmente, a lição de Bramante, que aplicou o seu conhecimento do “antigo” de uma forma inovadora, criando o “tempietto”, por ele projectado, para San Pietro in Montorio, uma releitura dos templos de planta centralizada da arquitetura romana que faria escola, por toda a Europa Moderna. A ordem usada é a coríntia fantasiada, com capiteis bastante correctos e fustes de colunas lisos, entablamentos e arcos-botantes com molduração do mesmo tipo. Ainda são de destacar as gárgulas, elementos do sub-mundo do Mal, e na parte de baixo, delicadas cabeças de animais fantásticos.

Esta obra obra situava se no centro de um dos três claustros do mosteiro de Santa Cruz, a chamada “crasta terceira”, como os documentos do tempo a identificam, e a sua construção foi promovida pelo prior reformador frei Brás de Braga. Nada tem a a ver com a lenda coimbrã de que foi desenhada por D. João III na “manga” da sua camisa, quando estava na cidade. No entanto, o nome de “manga” continua a ser um mistério.

Depois da extinção das ordens religiosas, em 1834 e 1835, e para regularização do traçado viário adjacente, uma das alas do claustro foi destruída, tendo as restantes vindo a ser remodeladas, em meados do século XX. Mas conhecemos o aspecto antigo através de gravuras e até já fotografias.

É uma construção bastante bem documentada. Sabemos que João de Ruão, a viver e a trabalhar na cidade, desde 1528 ou 1529, traçou o seu plano, do ponto de vista arquitectónico, pensou e desenhou a sua decoração, e também executou os baixos relevos, para o interior dos quatro cubelos ou capelas, trabalho pelo qual cobrou a avultada quantia de 140.000 reais. As cantarias foram da responsabilidade do mestre Jerónimo Afonso, que teve um papel de relevo como construtor, na cidade, durante várias décadas e foi um dos empreiteiros preferidos de João de Ruão.

A 22 de Outubro de 1535, frei Brás de Braga contratou com João Afonso, irmão de Jerónimo Afonso, o forro das quarto alas do claustro da Manga, a “crasta terceira”, sendo testemunha do auto notarial o arquitecto Diogo de Castilho, seguramente, por ser o autor da traça respectiva. A obra de pedraria ficou a cargo de Pêro de Évora, Diogo Fernandes e Fernão Luís que, em 1533, celebraram o respectivo contrato de empreitada. Todos eles viviam já em Coimbra, num tempo em que ainda se praticava o último gótico, mas adaptaram-se aos cânones da renascença.

Como se disse antes, esta é uma das primeiras obras arquitectónicas inteiramente renascentistas feitas em Portugal, e alia se a este facto o seu valor simbólico, e a sua estrutura evocativa da “Fons Vitae” ou Fonte da Vida, ideia a que não deve ter sido estranha a intervenção de frei Brás de Braga, com todo o seu conhecimento de Teologia e imbuído do espírito do Humanismo que bebera na Universidade de Paris.

A água representa a própria vida, brota da fonte dela, da vida, como sempre se designou. Nos Evangelhos, a alusão é constante. O próprio Cristo associa-a à sua mensagem. “No último dia, o grande dia da festa, levantou-se Jesus e exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e beba.” (João 7.37). Novamente, no Evangelho de São João, pode ler-se: "Afirmou-lhe Jesus: Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna." (João 4.13-14 ). Assim, a água ou a Palavra de Cristo se espalhará, como rios caudalosos, por todo o Mundo, e estará à disposição de quem a desejar beber e assim alcanças a Salvação.

Mas há mais, quanto a simbolismo. No essencial, a sua estrutura é um templete circular, como símbolo da Eternidade, do Céu e do lugar onde “mora” Deus, o Mundo Superior do Bem, por oposição ao inferior, do Mal. Está assente sobre oito colunas, cujo número não foi certamente escolhido ao acaso, pois para os cristãos é o número que simboliza a Ressurreição e a Transfiguração. Se o sete corresponde ao Antigo Testamento, o oito simboliza o Novo Testamento. Assim, o oito evoca e anuncia a prosperidade e a bem-aventurança de um Novo Mundo que Cristo trouxe.

A este corpo central dão acesso quatro escadas; o número quatro tem ligação a Deus, ao Mundo Superior que a cúpula evoca. Quatro são os elementos essenciais: ar, fogo, água e terra; e quatro são as fases da vida humana: infância, juventude, maturidade e velhice.

Depois, temos que pensar que há sete degraus, para se atingir a fonte propriamente dita, com uma larga taça e um repuxo, hoje desaparecida, de onde brotava a água, que escorria para os tanques interiores, devendo lembrar-se que o sete é considerado o número perfeito, no Cristianismo e em outras religiões; o sete é o número místico por excelência. É o número da Criação do Mundo; em três dias foi feito o Céu, e em quatro a Terra. É também o número que indica a relação viva entre o divino e o humano, realidade explícita na Estrela de Salomão, na qual, dois triângulos se cruzam: um ascendente e outro descendente. As seis pontas, mais o ponto central perfazem esse número místico, que simboliza a união do céu e da terra, do divino e do humano.

Os quatro tanques duplos para onde escorre e se deposita a água que brota da fonte do nível superior simbolizam os quatro rios do Paraíso referidos no Génesis: o rio Tigre, rio Eufrates, rio Gehon e o rio Pishon, e os jardins envolventes do conjunto o próprio Paraíso. Também é possível que os quatro rios sejam os que eram considerados os mais importantes e míticos da Antiguidade: o Tigre, o Eufrates, o Nilo e o Ganges.

A água, ou palavra divina, que envolve a construção, circunda e isola os templetes externos ou capelas de planta circular, a que se acedia por pontes levadiças de madeira que, puxadas por uma corrente, serviam de porta a cada cubelo, e permitiam isolar os religiosos, para ficarem em oração. Mas lembremos que essa água está a envolver os quatro Continentes conhecidos, representados pelos quatro cubelos: a Europa, a Ásia, a África e a América. Ou seja, a palavra de Cristo chega a toda a parte.

Um lavabo de mármore foi colocado no primeiro patamar da escadaria. Foi trazido de Lisboa por D. Acúrcio de Santo Agostinho, no triénio em que foi prior-geral da Congregação, entre1599 e 1602. Foi retirado do ângulo NO, quando das obras do restauro do claustro do Silêncio, há muitas décadas. 

Pedro Dias