A Árvore da Cocanha

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Boa noite, jóias refulgentes da criação. Nesta madrugada de sexta em que, mandado Bruno em paz, nada acontece, convém talvez contar uns cabrititos saltando cercas pela pradaria. Um, três, treze, trinta e três. Ou, em alternativa, se a matemática não for o nosso forte, ocuparmo-nos com uma reflexão correcta e agudíssima. Seja por exemplo esta simples e modesta: já notaram que o Hugo Chavez foi bem melhor do que o Maduro? Tal como o Cunhal foi melhor do que o Jerónimo, e o Che foi melhor do que o Fidel, e este foi melhor do que o Raul, e o Kim-pai melhor do que o Kim-filho, e o Kim-filho melhor do que o Kim-neto, e o Lenine melhor do que o Trotsky, e este último melhor do que o Estaline, e o Mao Tse-Tung melhor do que …. bom, do que a mulher dele, qualquer que tenha sido o nome dela, talvez Yoko Ono? Há aqui – parece-me – neste fenómeno repetido e regular uma espécie de lei geral em acção, que talvez possamos resumir dizendo que, nos Paraísos Socialistas, o melhor acontece sempre no Princípio, o qual dá lugar a continuações um pouco menos boas e assim sucessivamente, de menos bom em menos bom, até à catástrofe final da instauração da ditadura do (super)mercado.

 

 

A essa lei poderíamos chamar a lei do Éden. No Princípio, Marx criou o céu e a terra e viu que era bom. E pôs no centro um jardim maravilhoso, chamado Paraíso, onde as árvores davam tudo sem intervenção burguesa, pão, leite, sabedoria, joie de vivre e fé imaculada, e onde os homens e as mulheres, incluindo as cozinheiras, geriam os assuntos públicos sem sombra de temor ou o mais leve estremeção de dúvida. Mas no centro do centro havia uma árvore especial, a Árvore da Verdade, de onde brotavam, a espaços, para além das obras completas de Marx e de Engels, comentários devidamente certificados dos seus intérpretes infalíveis: Enver Hoxha, Gramsci, Althusser, Žižek, Sousa Santos. As pessoas comiam os frutos desta árvore e ficavam esclarecidas. Mas essa era uma árvore especial, sacrossanta, de uma delicadeza inimaginável, de tal maneira que nela, dissera Marx, só se podia tocar depois de quarenta anos de um implacável treinamento dialéctico. “Em todos os frutos podereis mexer livremente, menos nos desta árvore, que é a árvore do conhecimento do bem e do mal,” trovejara o Senhor Karl aos adâmicos da primeira geração, “porque no dia em que nela mexerdes sem usardes umas luvas especiais, e sem frequentardes a Universidade de Coimbra, ou pelo menos o ISCTE, morrereis por certo.”

 

Mas os homens, que são incorrigivelmente maus, sobretudo os das gerações seguintes, que vieram apenas uns dias depois da criação, quer dizer, da instauração da bondosa ditadura do proletariado, mexeram. Como podereis imaginar, mexeram. Aliás, basta dizer a um homem para não mexer, que ele mexe. E, tendo mexido, os homens corromperam a árvore e os seus frutos, e, aos poucos, a Árvore da Verdade tornou-se a árvore do Talvez, que foi dando frutos cada vez mais esmaecidos e duvidosos, e depois a árvore do Fingimento Universal, que no fundo já não dava frutos, porque era tudo enlatado e tinha de ser introduzido no paraíso por portas travessas, a partir do exterior e a peso de ouro, e finalmente, a árvore secou de vez e foi substituída por um supermercado polaco do Belmiro de Azevedo.

 

Mas por essa altura já o Paraíso tinha sido praticamente abandonado e estava quase sem habitantes. Em seu lugar, num planalto mais acima, crescera uma cidade de vergonha e exploração, a que os homens chamaram Gomorra e onde proliferaram incontáveis, no meio da abundância e da luxúria. E nessa cidade, em vez de árvores que davam fruta e pão, havia fábricas e lojas de conveniência abertas toda a noite. E o pão era recheado de creme e de chouriço espanhol, e a fruta era toda igual, sem bicho e sem sabor. E as filhas dos homens pobres, que não queriam ficar pobres porque tinham esquecido os seus Princípios, prostituíam-se casando com os filhos dos homens ricos, e a isso chamavam amor. E liam o que lhes apetecia, por exemplo, Pedro Paixão e o abominável José Rodrigues dos Santos, e ficavam o tempo todo a percorrer a net nos seus iPhones. E iam a concertos rock e choravam baba e ranho quando percebiam que apenas por três décimas tinham de ir para Sodoma frequentar o curso de medicinas alternativas.

 

E eram infelizes. Elas e eles. Toda a gente era infeliz. Porque o homem não foi feito para a abundância, mas para a Verdade. Que é um prato de lentilhas face a um florilégio de citações de Mao? Nada, por certo. O homem passa bem sem comer, mas não pode viver sem o solo firme das certezas. Sem certezas, sem a bem-aventurada consciência da Justiça e da Verdade, o homem não vive, nem pode respirar. Sufoca. Estiola. Morre, em suma, ainda que viva. E por isso, construída a cidade de Gomorra, não demorou muito que, num patamar mais acima, só um pouco mais acima, o homem tenha erguido outro jardim do Éden, novinho em folha, mas no fundo idêntico ao primeiro. E com os mesmos Princípios. E a mesma Árvore da Verdade no seu centro. E o mesmo gozo puro e casto, a natureza prístina de novo, refulgente de bondade e de verdade incontestável. Outra vez. Até decair de novo, como tem de ser.

É esta a lei do Éden.

Imagem retirada da net

 

José Costa Pinto

(A Frescura da Relva)