O Homem que nunca pisou o risco

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Aqui jaz, contrariado, António Facundes Burrica, marido de 2 mulheres, viúvo de 2, amante de 2, assassinado por 4. Visita prometida ao inferno pelas 6!

 

António Burrica?! O Tónho Beiçudo?! Olhei, desorientado à minha volta, mas o cemitério encontrava-se vazio. Há seis anos que não vinha à aldeia e, sem qualquer contacto com as gentes daqui, nem sequer sabia da morte do Tónho. Mas o que me embasbacava era o texto da lápide. Para além da bizarria, aquele a quem se referiam as palavras não poderia ser o nosso Beiçudo.

Lembrava-me do Tónho desde que me lembrava de mim. Sobretudo a partir do momento em que entrámos na Escola Primária. Ranhoso, a cera a escorrer dos ouvidos, a roupa suja e o cabelo desgrenhado, mais pelo desleixo da família do que pela falta de dinheiro. Tímido e calado, lá percorria connosco os poucos quilómetros que nos levavam ao sacrifício. Sempre sem pisar o risco. Assim mesmo. O Tónho nunca pisava os riscos deixados pelas rodas dos carros de bois, pelas das bicicletas, pelas da camioneta que trazia o pão nem os das lajes do átrio da escola. Aliás, também era obcecado pelo número 2. Subia, e descia, claro, os 2 degraus da escola por duas vezes, antes de entrar definitivamente, sentava-se, e levantava-se, claro, duas vezes, antes de ficar quieto na carteira e por aí fora. Habituados à estranheza de o Tónho nunca pisar o risco e à sua obsessão pelo número 2, tal nunca tinha sido sequer motivo de troça.

Já no Liceu da vila, lembro-me de o ver nas suas calças de ganga à boca de sino, a camisola de riscas de gola alta, o anel de ouro branco, com imitação de diamante, no dedo mindinho e o cabelo pelos ombros. Um rapaz à moda. Sempre sem pisar o risco. Nem o traço descontínuo da estreita estrada cujos quilómetros comia na sua Macal M70. Claro que acelerava 2 vezes antes de começar a rodar.

Durante anos perdi-lhe o rastro. Mas, um dia, esbarrei com ele na Assembleia da República. Eu, professor acabadinho de me formar, tinha levado uns quantos alunos em visita ao edifício. E lá estava o Beiçudo, também acabadinho de se formar em Direito, de fato e gravata, barriga proeminente e cabelo coladinho à cabeça, com risco perfeito, para uma entrevista com um assessor de um secretário de estado. Aperto de mão com abraço saudoso, votos de boa sorte e cada um seguiu o seu caminho.

Soube, mais tarde, que o Tónho – aliás, o Dr. António Facundes Burrica – fizera carreira na Assembleia da República, casara com a Drª Cidalina, reconhecida notária em Lisboa, e tivera 3 belos rapagões.

Ora, espantar-se-á, também, o caro leitor ao tomar conhecimento das palavras da lápide do homem que nunca pisara o risco.

Sem demora, dirigi-me à imprensa local: a taberna do Ti Jacinto. E lá soube dos muitos, mas pouco esclarecedores pormenores da morte do Tónho e do estranho caso da lápide.

O caso ocorrera há dois anos. Sem se saber que o Sr. Dr. estava na aldeia, o seu corpo aparecera à beira do riacho, com seis facadas profundas, claramente desferidas com raiva e convicção e disposto, em linha torta, sobre um risco bem desenhado a giz branco. Convocados os bombeiros, a GNR, mais tarde a PJ, nunca se descobrira o assassino do Tónho Beiçudo.

Mas o que importa é que a Ti Carrapiça, que faz limpezas em casa do Comandante da GNR da vila, contou que a Drª Cidalina, afinal técnica de limpezas na Assembleia da República, alinhara na mentira do marido, afinal motorista na Assembleia da República – tal como o tinha sido durante cinco anos na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa -, porque lhe aprazia ser uma senhora. No entanto, desconfiada de tantos dias e noites fora de casa, em trabalho, começara a desenrolar o fio de uma meada, que teria culminado na desgraça que já se conhece. O Tónho casara mais três vezes, encontrando-se de perfeita saúde a outra das legítimas e falecidas duas. Ainda se descobriram duas amantes.

Conta o povo que as quatro vivas apanharam o maganão à má fila e lhe acabaram com a obsessão do risco nunca pisado e do número 2. As duas facadas para perfazerem seis teriam sido desferidas em homenagem às duas falecidas. A coisa teria sido tão bem feita que, até ao momento, nenhuma fora acusada.

Resta o mistério da lápide. Por duas vezes o pai do Tónho a destruiu à machadada e por duas vezes, dois dias depois, uma lápide igual à anterior aparecia no mesmo local.

Paz ao número 2 e ao homem que tantos riscos pisou!    

 

PC