VAMOS APRENDER A PERDER

MARIA JULIA HUMOR13

 

Já não venho cá há demasiado tempo. Mas o diretor de O Ponney chateou-me o suficiente para voltar cá. E desta vez vou-vos ensinar a perder. Essa qualidade tão pouco apreciada por os que gostam de ter.

Começo com uma inevitável realidade: tenho um curriculum invejável em perder coisas e não só! É claro entre as pessoas que me conhecem que costumo perder muitas coisas como luvas, cartas das finanças, guarda-chuvas, anéis, brincos, relógios e até as horas.

A impressão que eu tenho é que as minhas mãos são feitas de manteiga: os objetos separam-se de mim, escorregam pelas mesas, fogem para o chão, desaparecem sem deixar vestígios e nunca mais telefonam, nem mandam recados, já não escrevem cartas nem enviam emails. Assim que se libertam de mim viram-me as costas. Um corte relacional para sempre.

Bolas!

Talvez por isso, nunca tenha dado muito valor às coisas físicas, às ditas coisas materiais, incluindo o dinheiro. Não por ter muito dinheiro, mas por me habituar mais à falta dele. Nem mesmo dou valor a cargos, prémios, títulos, epítetos a que a sociedade dá muita relevância.

Que diferença faz se me tratam ou não por doutora, tendo em vista que não sou médica, nem atendo por marcação, nem me imponho pela imagem?

Já fui presidente de algumas algumas organizações, como o condomínio do meu prédio, por exemplo, que já me deu algumas dores de cabeça. Nesses muitos momentos, talvez únicos, em que não consegui perder as minhas dores. Os únicos momentos sem a eficácia de ‘saber perder’.

Sim, também eu já fui presidente, mas o que é que importa um título?
O único cargo de presidente que importa é o da República, mas apenas quando quem o exerce é excelente. Não é o caso do atual e não se adivinha que o vindouro não seja melhor.

Também nunca tivemos nenhuma mulher Presidente da República. E como Primeira-ministra em Portugal apenas tivemos a Maria de Lourdes Pintasilgo que liderou o V Governo Constitucional, de Julho de 1979 a Janeiro de 1980 com seis meses de governo. E já é muito para uma mulher. Mas não perdemos a igualdade de o ser perante a Lei. Pormenores que me inundam a mente.

Talvez por isso tenho a mania de achar que o que interessa à maioria não considero importante ou sequer que tenha alguma relevância. Talvez por causa disso, também a mim, não me apeteça fazer escadinha dentro de partidos para poder ir a votos. Como mulher não me apetece fazer fretes para poder cair nas graças de quem decide quem vai ser a cara no cartaz. Até porque me ia apetecer fazer uma careta. Por exemplo com a língua de fora a dizer “esta é para ti que não votas em mim!”

Imagino que as equipas de marqueteiros e afins me negassem a brincadeira. Hoje acredita-se muito na imagem exterior sem sentido de relevância.

Talvez porque fomos criadas a acreditar que na ausência de valores interiores tudo o que fosse sinal exterior de importância passava a ser a coisa mais “sagrada”. A ideia alargou-se ao ponto de nos fazer esquecer o que é realmente importante. Hoje falamos apenas do que aparenta. Nada mais!

A coisa foi enaltecida e acabou por contaminar o que de facto é importante.

Hoje aumentam os filhos do vazio, os primos do vácuo, os irmãos da nulidade absoluta em termos de sonhos e ideais. Crescemos a ver desmoronar a crença no “25 de Abril” e só depois percebemos que se resumia a uma cantilena de prosperidade e democracia apenas para uns eleitos. Hoje, a nossa única guerra acontece no “Black Friday”e nas redes sociais a substituir os cafés.

Dizem para faturar e multiplicar. Tudo se resume a uma certa “economia” que nem sequer respeita a verdadeira origem da palavra.

Porra! Anda tudo ignorante?

A palavra ‘economia’ tem origem no termo grego "oikonomía", que significa "administração da casa" ou "gestão do lar". "Oikos" em grego quer dizer "casa" ou "lar", e "nomos" significa "administração", "lei" ou "norma". Portanto, a raiz da palavra remete à ideia de organizar e gerir os recursos de um lar, uma família. Leram bem. A família, as pessoas, eram o ponto mais importante para que não faltasse nada às pessoas. Não era para usar em gráficos ou para dizer: “temos que trabalhar mais, por menos salário e a pagar mais impostos”. Ou alguma ideia parva do género.

Hoje a palavra “economia” significa tudo o que não é o seu verdadeiro significado. E em nome de uma economia de mercado internacional, paga-se menos a quem trabalha e até...pasmem-se as almas mais equilibradas que temos que ter mais migrantes para fazerem o que os portugueses recusam pelos salários miseráveis que dão.

Ainda que me falte conhecimento de Psicologia, atrevo-me a dar um conselho: a verdade é que estão a criar uma ideia geral de desconsiderar o outro a verdadeira razão que fez nascer o racismo, o sexismo e outros “ismos” que são perigosos para o ser humano. O outro o que trabalha em condições miseráveis, só porque no seu país era muito pior, é o novo escravo com a bênção da esquerda e da direita das partidarites. O outro que pode trabalhar a baixo preço em nome da tal “economia” falsa.

Como disse no inicio: perco sempre tudo. Agora queria perder a memória dos muitos momentos de injustiça provocado pelos partidos, o que eu chamo de “partidarite” que também é partilhado pelo diretor de O Ponney, José Augusto Gomes. Sendo que desta vez acredito que perder pode ser ganhar. Perder é deixar que a coisa perdida siga o seu caminho. Afinal nada temos. Fica cá tudo.

Mesmo que perca a pouco-a-pouco a vida. Se perdemos vida quando envelhecemos, acabamos sempre por ganhar mais reflexão pelas coisas verdadeiramente importantes.

Gostava de continuar a conversa, mas está na hora de ir à rua. O cão da vizinha leva-me três voltas de avanço.

Maria Júlia