Margarida e o aquário

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De mãos nos bolsos das jardineiras novas, Margarida esquadrinhava, com os grandes olhos negros, areia, pedras, grutas e ervas. Nem sinal de Véu.

O aquário parecia um velório. Há pouco tempo, tinha escapado à vigilância dos pais que, perto do adro da igreja, conversavam com uns amigos. Entrou na capela mortuária, para onde se dirigiam algumas pessoas. Embora tenha saído rapidamente, daquele lugar guardou o silêncio e a tristeza. Já há alguns dias que a vida no aquário era assim.

O grande retângulo de vidro fora instalado na cozinha por ser a divisão onde a família, bicharada incluída, passava a maior parte do tempo. Ao contrário do receio dos pais, aquilo não a distraía. O vaivém dos peixes, o pipilar de Rafinha, o belíssimo canário amarelo, e o ronronar de Nino no seu colo tranquilizavam-na e ajudavam-na a concentrar-se. O seu amor pelos animais — queria ser entomóloga como a bisavó — era partilhado por toda a família. E os bichos também gostavam da sua companhia, sentia isso.

Mas, agora, Véu estava deprimido, dissera-lhe o avô Zé. Não tinha pontinhos brancos na pele, portanto não era um fungo. Não tinha feridas nem infeções. Também não era acumulação de gordura, porque não flutuava. Mas, há uma semana que praticamente não comia —logo ele que estava sempre a comer e na mão de Margarida! —, pouco nadava, ficava sempre no fundo do aquário, junto da entrada da sua gruta. Já nem vinha brincar com ela, batendo a cauda, devagarinho, no vidro, quando Margarida lhe dava pequenos toques, chamando todos os peixes para a história que lhes lia em todos os fins de tarde. Também Nino e Rafinha se mantinham quietos, pouco miando um, pouco pipilando o outro.

A menina mantinha a esperança de ouvir a voz de um animal, como tinha acontecido dois anos antes, num cruzeiro que fizera com a família. Só a amiga do avô Zé fingira acreditar na conversa que mantivera com a gaivota. Todos os outros se tinham rido. Apesar de até ela, agora com oito anos, começar a duvidar do que acontecera, insistia em ficar na grande cozinha, depois do lanche, e ler uma história a toda a bicharada da casa. Confiava em que, um dia, num momento em que o avô a deixasse ali sozinha, algum dos animais se manifestasse.

Era o que se preparava para fazer naquela segunda-feira chuvosa, quando, de repente, deu um salto para trás. Otto, o limpa-vidros, aproximara-se a toda a velocidade e colara as suas ventosas ao vidro, mesmo junto aos olhos da menina. Apesar de estar acostumada à energia do peixe e às suas brincadeiras, Margarida assustava-se sempre. Otto contrariava a timidez dos outros peixes da sua espécie, pois era muito divertido, sempre bem-disposto, passava o tempo a fazer acrobacias na água, à procura dos pequenos pedacinhos de batata, cenoura ou pepino com que o alimentavam ou, como qualquer limpa-vidros que se preze, a abocanhar os vidros do aquário, deixando-os quase invisíveis. Era a sua função ali e levava-a muito a sério. Um verdadeiro amigo do ambiente.

Mas o que era aquilo? Otto movia a grande boca? Talvez tivesse ficado colado e não conseguisse soltar-se. Margarida bateu com um dedo no vidro mesmo no meio da bocarra do peixe.

— Estás parva? Chega aqui um ouvido. A minha voz vai ficar distorcida por causa da água. Vá, chega aqui!

— Tu falas?! Falaste comigo? — perguntou Margarida, os grandes olhos pretos esbugalhados.

Como se apenas esperassem pela coragem de Otto, todos os outros peixes se aproximaram do vidro.

Primeiro, uma mancha vermelha e azul descreveu uma espiral perfeita, a grande velocidade, e parou, em forma oval junto do vidro. Era o lindo cardume de néons, os pacificadores do aquário, que intervinham na socialização da comunidade.

Logo a seguir, apareceu o briguento e solitário Betta, com a sua belíssima cauda em leque, caída e esvoaçante. Também ele, nos últimos dias, deixara de praticar os seus saltos através dos arcos, de que tanto gostava.

Todos se posicionaram junto ao vidro dianteiro do aquário, olhando para Margarida, que teve consciência da situação inusitada e, olhando para os lados, para verificar se ninguém a ouviria, perguntou:

— O que se passa? É o Véu, não é? Está doente?

— É claro que está doente, não percebes? Está deprimido — respondeu o Betta, muito nervoso.

— Mas porquê? Não tem uma vida feliz aqui connosco? — espantou-se Margarida.

Nenhum dos peixes teve tempo de responder. Da gruta mais recôndita do aquário, saiu um dorso laranja, de cauda e barbatanas grandes, pesadas, branquíssimas. Véu era um peixe muito bonito. Nadou devagar, como se tivesse perdido toda a alegria de viver, e, quando se juntou aos companheiros, dirigiu a Margarida as palavras que a deixaram estupefacta:

— Estou deprimido, sim. Não deves saber que sou descendente de peixes capturados na Ásia. Apesar de suportar os 28º deste aquário, sou um peixe de águas frias. E preciso de espaço! Preciso de liberdade! Tenho cinco anos, cheguei a meio da minha vida. Não quero morrer aqui, sem viver grandes aventuras. Sabes que sou um peixe inteligente. Conheço várias cores, sons, brinco contigo e com o teu avô e gosto muito dos meus companheiros, do Nino e do Rafinha. Mas, sonho com a vida no mar, com todos os peixes que poderia conhecer, com as viagens fantásticas que poderia fazer! Quero aproveitar o resto da minha vida! Um peixe não nasceu para estar preso num aquário!

Margarida nem queria acreditar no que estava a acontecer. Olhou para os outros animais, mas só mais tarde viria a perceber os verdadeiros sentimentos de cada um naquele momento.

— Só tu me podes ajudar — suplicou o peixe.

— Eu?! Mas como?

Margarida percebeu, então, que Véu já tinha o seu plano arquitetado há muito tempo.

— Chega aqui mais perto.

Margarida aproximou-se ainda mais, todos os peixes se aglomeraram junto de Véu e também Nino e Rafinha — que há muito tempo aprendera a abrir a porta da gaiola sozinho — se juntaram aos amigos.

— Podes pôr-me num saco de plástico ou num recipiente com água e guardar-me na tua lancheira. Faltas à escola e levas-me até ao mar — sugeriu Véu, com uma voz dengosa.

— Estás doido?! Não posso fazer isso. Só tenho oito anos, não sei como chegar ao mar sozinha. Além disso, se fugisse, a polícia encontrava-me logo.

Véu nem respondeu. Murchou novamente e, virando a cauda a todos, regressou ao seu esconderijo. Num ápice, todos voltaram aos seus lugares, pois o avô Zé já entrava na cozinha. Margarida não lhe contou o sucedido, apesar de o avô ser a pessoa mais importante para ela.

Nos dois dias seguintes, a situação piorou: Rafinha deixou mesmo de cantar e passou a virar-se para a parede; Nino não voltou a miar nem a saltar para o colo da menina; os néons fecharam-se numa bola e mantinham-se no canto mais escuro; Otto quase desaparecia por entre as plantas, pedras e a areia fina, os raios duros das barbatanas bem salientes, em sinal de protesto e Betta passou a morder a cauda e deixou que se lhe encurtassem as barbatanas. De Véu pouco sinal. A bicharada vivia sob grande pressão. Todos compreendiam o desejo de liberdade do amigo. Mas, também pensavam nas saudades que teriam dele. Naquela casa, os animais eram uma família. O avô Zé tapara o aquário para que os peixes não saltassem para fora e o gato e o canário não os importunassem e fechara a gaiola para que Nino não ferisse Rafinha. Não sabia dos laços que os uniam.

 

*

 

Margarida era uma menina inteligente e pragmática. Rapidamente resolveu o dilema e arquitetou um plano. Na quinta-feira, ao fim da tarde, sentou-se junto do aquário, como de costume, para ler uma história aos animais. Assim que ficou sozinha, chamou-os a todos, com voz decidida. Devagar, voltaram a reunir-se. Peixes de um lado, Margarida, Rafinha e Nino do outro.

— Amanhã tenho uma visita de estudo às salinas da Figueira da Foz. É a única oportunidade de te tirar daqui, Véu. Levo-te no tupperware vermelho, dentro da minha mochila. Ao chegar lá, tenho de conseguir escapar e chegar rapidamente à beira-mar, para te libertar. Mas, não vai ser fácil. Viajarás no escuro e, embora leve as tuas bolinhas de ração de molho, será difícil alimentar-te. Também não tenho a certeza de conseguir escapar às professoras e aos colegas. Mesmo que tudo corra como planeado, ficarás no mar, por tua conta. És um peixe de aquário. Nem sequer gostas de águas movimentadas. A vida não será fácil. Tens a certeza de que queres fazer isto?

Véu não cabia em si de contente. Ao contrário do que era suposto, por ter as barbatanas grandes e pesadas, começou a nadar, quase velozmente, pelo aquário, rodopiando em volta dos companheiros que lhe iam dando palmadinhas nas barbatanas e na cauda. Também Nino encostou uma pata ao vidro, em sinal de felicitação, e Rafinha deu umas bicadinhas. O entusiasmo dos amigos não era grande, mas Véu estava tão feliz por ter a oportunidade de alcançar a liberdade que não deu por nada.

 

PC