CRUZ DOS MOROUÇOS TERRA DE PROTESTOS
Dando continuidade ao tema das nossas aldeias portuguesas, hoje vou falar de uma que praticamente me viu nascer se é que podemos falar de uma ‘aldeia’ no sentido literal. No entanto, todas estas localidades limítrofes tinham tudo de aldeias. Não podia no entanto, deixar de lhe prestar uma pequena homenagem.
Situada às portas de Coimbra, esta aldeia carrega uma história fascinante, repleta de memórias que moldaram a minha infância e adolescência, mesmo não vivendo no seu centro. A minha ligação a este lugar é profunda, e os seus habitantes sempre foram uma extensão da minha própria família. Neste texto, irei explorar as batalhas históricas que ali decorreram, o legado das minas e grutas que se encontram na região, um verdadeiro labirinto subterrâneo e a forma como a vida comunitária se manifestou nas diversas quintas que outrora existiram.
Eu nasci numa dessas quintas. Ainda cá permaneço hoje neste cantinho onde me sinto bem.
A Cruz dos Morouços é um lugar que, à primeira vista, pode parecer tranquilo, mas que guarda em si um passado repleto de acontecimentos significativos. As batalhas que se desenrolaram nas suas proximidades, como a famosa batalha de 24 de junho de 1832, fazem parte da Guerra Civil Portuguesa, um conflito que dividiu o país entre liberais e absolutistas. O eco dos combates ainda ressoa nas memórias dos que ali viveram, e é impossível não sentir o peso da história ao caminhar pelas suas ruas.
As minas e grutas da região são outro ponto de interesse. A sua origem remonta a épocas antigas, quando os habitantes exploravam os recursos naturais que a terra oferecia. Estas formações subterrâneas, com as suas passagens secretas e câmaras misteriosas, eram o cenário perfeito para as nossas brincadeiras de infância. Desde exploradores a arqueólogos, éramos todos aventureiros em busca de tesouros escondidos, transformando cada saída em uma nova descoberta. Um dia também eu me quis aventurar nestas descobertas, mas o medo da moura encantada e o facto da vela que servia de lanterna se apagar, fez me recuar e voltar a trepar de volta à terra firme. Mas quem poderá descrever melhor estas aventuras será sem dúvida o diretor do nosso jornal O Ponney o José Gomes, que se aventurou nesta saga com o seu cão e o amigo Adérito Gomes.
Naqueles tempos, a vida nas inúmeras quintas existentes, era marcada pela harmonia e pela proximidade. Cada família conhecia a história da outra, e a palavra “solidão” parecia desconhecida entre nós. Brincávamos nas ruas, corríamos pelos campos e, mesmo ao percorrermos vários quilómetros para ir para a escola, era o convívio que tornava a a nossa vida leve e agradável. Não havia alternativas de transporte, mas isso nunca foi um problema. O espírito de comunidade era tão forte que, imaginem, em meados dos anos setenta, a população local decidiu "raptar" um autocarro em Coimbra, conseguindo assim estabelecer um transporte regular para a Cruz dos Morouços. Este ato audacioso não apenas facilitou a vida dos habitantes, mas também fortaleceu o espírito de união entre todos nós, criando laços que se perpetuaram ao longo do tempo.
A festa em setembro era um dos momentos mais esperados do ano. A sua preparação envolvia toda a comunidade, e a alegria estava no ar. Lembro-me vividamente do grupo folclórico, que trazia as tradições à vida com danças e músicas que falavam da nossa cultura. O futebol também tinha o seu lugar de destaque, com a equipa da Cruz dos Morouços a reunir jovens e adultos em torno de um sonho comum. Os bailaricos, animados sob o olhar atento das nossas mães, eram o ponto alto das festividades.
Uma das minhas memórias mais queridas remete-me para uma noite de baile, quando tive a honra de ser a rainha escolhida pela dança do ramo. Com apenas 15 anos, deixei o meu par pasmado no meio do enorme estrado de madeira, quando me convidou simpaticamente para dançar. O nervosismo tomou conta de mim, e fui pedir à minha mãe autorização para dançar com ele. Depois de várias insistências, lá fui eu, cheia de medo que ela me visse muito próxima do rapaz. Avisei-o para manter as distâncias, mas o que se seguiu foi um verdadeiro pesadelo de pisa-pés até ao final da música sempre com receio de levar duas bofetadas da minha mãe. A inocência da juventude e a magia daquele momento ficaram gravadas na minha memória para sempre.
Contudo, os tempos mudaram. Hoje, ao olhar para trás, sinto uma profunda nostalgia. A evolução dos tempos, que deveria unir-nos, parece, na verdade, ter-nos afastado cada vez mais. É verdade que a modernidade trouxe benefícios, como o acesso à informação e a comodidade das novas tecnologias, mas a falta de socialização é uma realidade que se torna cada vez mais evidente. As interações que antes eram naturais e espontâneas, foram substituídas por mensagens digitais, e o calor humano das relações pessoais parece estar a desaparecer.
A aldeia que me viu crescer, com as suas histórias, tradições e laços comunitários, é agora um reflexo de um tempo que se perdeu. Fomos exploradores, arqueólogos, arquitetos, mecânicos, jogadores de futebol e contadores de histórias. Cada um de nós deixou a sua marca, e a memória da Cruz dos Morouços permanece viva em nossos corações. No entanto, é essencial lembrar que, apesar das mudanças, as raízes da nossa infância e das experiências partilhadas moldaram quem somos hoje.
Que possamos, de alguma forma, resgatar a essência da vida comunitária e redescobrir a beleza das relações humanas que, no fundo, são o que realmente importa. Na próxima semana tentarei fazer também um segundo texto para vos falar da aldeia que se situa antes da Cruz dos Morouços. Os Barreiros. Até lá, boas leituras.
Bom fim de semana.
Manuela Jones