CREMILDE DA PIEDADE FERNANDES - A “AMANDA” DE SANTA CLARA

JO JONES75

 

Em Santa Clara, as memórias dançam entre as sombras e os sorrisos dos que partiram. Numa das minhas últimas crónicas, lembrei as memórias e algumas histórias recordadas pela minha mãe e pelas senhoras da sua geração, mas alguns dos leitores de Santa Clara, pediram-me para falar e recordar outra figura que marcou a nossa freguesia de forma indelével: Cremilde da Piedade Fernandes, a mulher que todos conheciam como "Amada".
Um nome que, ironicamente, pouco tinha a ver com o que a vida lhe proporcionou.

Cremilde era uma mulher de pés descalços, calejados pelo peso de uma existência repleta de dificuldades. Nunca a vi calçar sapatos. Fosse inverno ou verão, os seus pés andavam expostos ao chão, como se a própria terra quisesse abraçá-la e, ao mesmo tempo, rejeitá-la. O desdém que a vida lhe ofereceu era visível em cada passo que dava, em cada olhar de desprezo que recebia. O seu nome, uma espécie de ironia cruel, provocava-lhe fúria. «Amada, o cara***!»” era a sua resposta, um grito de revolta que se ouvia nas ruas onde a chamavam.

Com um corpo franzino e a pele tisnada pelo sol e pelas adversidades da vida, ela caminhava pelas ruas com uma dignidade silenciosa, sua voz grave e repleta de vernáculos ecoando entre as esquinas. Era uma mulher bondosa, que nunca fez mal a ninguém, mas que, por sua fragilidade, tornava-se alvo de homens que, sob a fachada de respeitabilidade, a exploravam em troca de copos de vinho ou pequenas gorjetas para alimentar seu filho. A sua história, repleta de dor e resiliência, é um retrato comovente da hipocrisia de uma sociedade que, ao invés de protegê-la, a marginalizava, revelando as complexidades da dignidade humana em tempos difíceis.

Os seus filhos eram a luz da qual ela nunca se esqueceu, mesmo no meio da escuridão da sua vida. Três crianças, frutos de amantes anónimos que nunca conheceram a existência dos filhos. Na altura chamavam-lhe filhos de pais incógnitos. Os dois primeiros filhos foram-lhe retirados, enviados para longe, para uma instituição, e nunca soube dizer-lhe quem eram os seus pais, uma realidade que pesava sobre o seu coração. Ela dizia que hipoteticamente poderiam ser filhos dos moleiros de Cernache.

Carlitos, o mais novo, o terceiro filho, era o que permanecia ao seu lado, mesmo quando o álcool a tornava vulnerável. Carlitos, moreno e de olhos vivos, era o espelho da sua mãe, um reflexo de uma vida que lhe era imposta. Brinquei muitas vezes com ele, sem saber que a sua infância era marcada por uma liberdade selvagem, mas também por uma ausência de regras que o tornava um menino à deriva. Eu partilhava com ele a minha merenda e os meus cromos do espaço 1999 repetidos.

Cremilde tinha uma maneira peculiar de lidar com a vida. Não permitia que Carlitos fosse à escola, acreditando que a educação era um luxo que não podiam permitir-se. Era uma boa mãe, mas sem o entendimento de que o futuro do filho dependia de algo mais do que o amor que lhe dava. Não tinha discernimento para isso. Sentava-o à porta da casa da tia Carolina, onde o sol brilhava nos dias de primavera , e cantava sempre a mesma melodia, como se a música lhes pudesse retirar das agruras da vida. Já não me recordo do tema. No que dizia respeito à sua aparência, Cremilde limitava-se a pentear o cabelo com risco ao meio, um pouco de brilhantina que a irmã tinha em casa.

Era o seu único luxo.
A parte de trás da sua cabeça, era um emaranhado de piolhos e "ninhos", que ela tratava de remover meticulosamente, apanhando-os entre os dedos e esmagando-os com um gesto rápido e decidido. Carlitos, com o cabelo desgrenhado, não escapava também a esta rotina, e a luta contra os piolhos tornava-se um ritual silencioso, um reflexo da batalha que travava contra as adversidades. Escusado é entrar aqui em detalhes sobre o tratamento final que dava aos piolhos.

A relação de Cremilde com a sua irmã Carolina era um capítulo à parte. Carolina, trabalhou muitos anos na casa do Dr. Arruela, uma figura bastante conhecida em Santa Clara. A sua antiga casa embora em ruínas, ainda permanece de pé. Ora, Carolina era o oposto da irmã: era organizada, cuidada, presa à rotina que a vida lhe impôs. O irmão dela, José, vivia ao lado da Carolina e andava sempre impecável e bem vestido, em contrapartida com o estado de Cremilde. Enquanto Carolina se esforçava para sobreviver, Cremilde parecia flutuar entre os momentos de lucidez e as nuvens de desespero que a envolviam. O cunhado, cuja identidade não me recordo, enfrentava a sua própria batalha contra os graves problemas respiratórios que padecia e dos quais veio a falecer.

Um dia, uma senhora, movida pela compaixão, tentou oferecer-lhe roupa quente e umas meias de vidro, na esperança de protegê-la do frio. A resposta de Cremilde foi um grito de revolta:

«Queres dar-me meias de vidro para me cortarem as pernas? As meias partem-se, e os vidros ficam enterrados na c***.»

Essa frase, carregada de dor e ironia, entoava como um lamento pela vida que nunca teve a oportunidade de transformar.

Os ecos da vida de Cremilde ainda se escutam em Santa Clara, mesmo depois da sua partida. As memórias permanecem, como sombras que se projetam nas paredes das casas em ruínas. O destino de Carlitos levou-o para longe, para a instituição do Padre Américo, onde, com a ajuda de uma madrinha, conseguiu formar-se. Entretanto, a minha tia, que vivia na mesma quinta onde também residia a "Amada", e com quem partilhei os melhores momentos da minha infância, faleceu muito cedo, e o seu desaparecimento foi como o corte da velha Oliveira das Mentiras onde tantas vezes me escondi vinda da escola. Também eu na altura me escondi na tristeza da perda da mulher que mais amei na minha vida. Nunca mais vi a "Amada". Nunca mais voltei à Vila Lusitana depois do falecimento da minha tia. É verdade que a sua partida, tal como outras figuras conhecidas em Santa Clara, trouxe um vazio que se arrastou pela freguesia.

A história de Cremilde, a "Amada", é um retrato de uma vida marcada por dificuldades, mas também por uma força invisível que a acompanhava. A sua figura, embora triste, é uma lembrança viva de que, por trás de cada sorriso e de cada olhar perdido, existe uma história que merece ser contada. Hoje, ao escrever estas palavras, não posso deixar de recordar os momentos em que a vi, não como uma mulher desamparada, mas como uma mãe que, apesar de tudo, amava os seus filhos com uma intensidade que transcende a própria dor da vida.

Cremilde da Piedade Fernandes, uma mulher que, mesmo sem saber, foi "amada" por muitos, ficou gravada na memória de Santa Clara como um símbolo de luta e resiliência. E assim, a sua história continua a ecoar, lembrando-nos de que, por trás de cada rótulo, existe um ser humano com uma vida complexa, cheia de nuances e sentimentos.

Boas férias a todos

Manuela Jones