Além-Tédio

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Obra de Ben Goossens

 

Nada me expira já, nada me vive —

Nem a tristeza nem as horas belas.

De as não ter e de nunca vir a tê-las,

Fartam-me até as coisas que não tive.

 

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,

Dormir em paz num leito de hospital...

Cansei dentro de mim, cansei a vida

De tanto a divagar em luz irreal.

 

Outrora imaginei escalar os céus

A força de ambição e nostalgia,

E doente-de-Novo, fui-me Deus

No grande rastro fulvo que me ardia.

 

Parti. Mas logo regressei à dor,

Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:

A quimera, cingida, era real,

A própria maravilha tinha cor!

 

Ecoando-me em silêncio, a noite escura

Baixou-me assim na queda sem remédio;

Eu próprio me traguei na profundura,

Me sequei todo, endureci de tédio.

 

E só me resta hoje uma alegria:

É que, de tão iguais e tão vazios,

Os instantes me esvoam dia a dia

Cada vez mais velozes, mais esguios...

Mário Sá-Carneiro

Colecção Poesia

Edições Ática