Padre António do Carvoeiro

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A caça sempre me fascinou pela vivência de uma prática desportiva que tinha para mim o sabor da comunhão com a natureza. O convívio com os parceiros e as estórias de cada um, o encanto de poder assistir ao desempenho dos cães, os momentos em que partilhávamos as merendas, os quilómetros palmilhados por entre bastios e florestas nos vales densos e húmidos que sempre abrigavam as galinholas, o levantar do bando das perdizes que nos fazia tremer e, depois, o cantar de uma delas ao longe e outra mais longe ainda, tudo a acontecer como os caçadores mais velhos ensinavam aos mais novos: berro de gaio, perdiz de canto e lebre de alevanto são sinais de perigo que a caça reconhece entre si. Com tal aviso nunca se lhe chega. Que lição para quem queria aprender coisas da vida!

 Naquele dia, o destino era o Poço do Lobo, um matagal medonho onde jaziam os escombros de um antigo lagar de azeite, que logo resolvemos abandonar pensando no sacrifício dos cães. E rumámos para os barrocos do Montinho, antigos areeiros comunitários, onde o povo ia buscar a areia amarela e barrenta para fazer os adobes. Ali havia água para os animais e bons assentos para batermos os farnéis. E quedámo-nos. O tio Manuel Zé, já a caminho dos oitenta anos, viria a apontar o rumo do Carvoeiro. E entrámos num terreno inundado de silvas, onde árvores decrépitas morriam no que tinha sido o quintal de uma casa de lavoura. E o velho caçador contou: - Este foi o local onde viveu aquele que era conhecido por Padre António do Carvoeiro com a criada e mãe dos filhos de ambos, e estas eram as terras que ele, descalço e sempre de batina vestida, lavrava e cultivava com duas mulas guiadas pela mulher e tocadas pelas crianças, acentuava aquele que bem o conheceu e sempre fazia questão de comer o farnel que as filhas ali levavam à cabeça nos dias de caça, tal como acontecia com outros caçadores de passagem. - Dias de festa esses, para o padre, a amiga e os dois filhos que enchiam a barriga e ainda sobrava para o dia seguinte. E a loiça ficava ali e ali era lavada, pois o padre, dias depois passava pelo Monte Arcado para a entregar e sempre trazia um saquito de batatas e outro de milho na carroça das mulas, enquanto a broa, que também lhe davam era devorada pelos meninos cheios de fome.

 A história do Padre António é muito triste e a minha avó repetia-a cada vez que o via passar, sentado na carriola com as rédeas na mão, na esperança de lhe encomendarem umas missas e uns trintários para pagar as promessas de quem tinha falecido sem as cumprir, e que sempre os herdeiros se dispunham a custear. E o Padre António era a pessoa certa, pois rezava na casa dele. E a minha avó continuava a narrar este drama: - Ele era o pároco do Barroco, mas fez as duas crianças à criada e quando o bispo soube tirou-lhe a paróquia, as missas e todos os serviços religiosos, para que ele deixasse aquela gente pecantes. Mas ele recusou-se a fazê-lo e foi viver da caridade para aquele degredo, como se estivesse a cumprir uma penitência E concluía sempre da mesma maneira: - Como é que um bispo pôde fazer uma coisa destas!

António Castelo Branco      

Imagem retirada da net