O contador de histórias estáticas e estéticas

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A fotografia é, provavelmente, a mais transversal e democrática forma de arte. Desde o tempo da sua invenção no século XIX – e hoje mais do que nunca – qualquer um pode andar por aí a captar momentos, a ser um fotógrafo amador, a ser um artista. No entanto, podemos dominar as técnicas, mas nem todos chegaremos ao apurado sentido estético que permite registar a vida assim, sugerindo histórias e narrativas para cada pessoa ou elemento físico fotografados num preciso momento. Isso é só para alguns. E, por isso, as suas imagens perduram no tempo. Podem até ficar décadas adormecidas num baú de família, mas, quando despertam outra vez, renascem e interagem com quem as vê pela primeira vez – e comunicam melhor com quem se deixa encantar pelo espanto da descoberta. A fotografia de instantâneos tem esse lado cinemático, cada uma destas imagens é como um filme que se redescobre.

Mesmo tantos anos depois, as fotos aqui reveladas têm esse pó de magia. Estamos a olhar, com olhos de ver, o deambular pela cidade de um caçador de instantes, não só a capturar o lado mais fotogénico da cidade, mas testemunhando com arte o movimento próprio do seu tempo. A arte de Bernardino Pires está na forma como ele cuidava de cada clique, tirando certamente umas quantas “chapas” que depois trabalhava criteriosamente na sala escura onde as imagens eram reveladas. Até imaginar isso é mágico! Fechar os olhos e ver Bernardino Pires, em longas horas de laboratório, a apurar a técnica de forma prática, partindo de cada rolo inteiro cujas melhores imagens nos encantam agora neste livro, revelando-nos um Porto já esquecido.

A sensação imediata de deslumbre que tive ao ver a qualidade destes instantâneos fez-me lembrar o clássico de Manoel de Oliveira “Aniki Bobó”. A verdade é que nem o tempo coincide: o filme é de 1942 e as fotos aqui mostradas foram captadas muitos anos depois. Todavia, a identidade do Porto mais profundo está toda aqui, em ambas as obras marcadas pelo traço do realismo – ou do neorrealismo –, muito embora se saiba que Bernardino Pires era um autodidacta que procurou o seu estilo próprio sem se agarrar a quaisquer géneros pré-definidos.

Não por acaso, o director de fotografia de “Aniki Bobó” e das primeiras obras de Manoel de Oliveira, António Mendes, era amigo próximo de Bernardino Pires e conviviam nas tertúlias fotográficas que então juntavam os mestres da imagem. A esse propósito, diga-se que o Porto teve sempre tradição e nomes grandes na história da

fotografia em Portugal. Basta recordar a “casa Alvão” ou dois nomes incontornáveis, Emílio Biel (1838 - 1915) e o primeiro cineasta português, que era acima de tudo fotógrafo, Aurélio Paz dos Reis (1862 -1931).

Quando olhamos para uma foto, para um instantâneo de vidas frisadas naquele momento, lugares agora fixos que estavam em movimento, desperta-nos sempre a curiosidade, aquela tentação – mesmo que inconsciente – de imaginar toda a ação, no antes e no depois, para além da fotografia propriamente dita. Para onde foi aquela gente? O que pensaram, por instantes, ao reparar naquele homem curioso que lhes apontou a sua “Zeiss Super-Ikonta” e fez simplesmente clique? Mal imaginavam que, 60 ou 70 anos volvidos, estaríamos aqui a tentar adivinhar a história, toda a história, que nos é contada num primeiro olhar.

Bernardino Pires agarrou a vida em múltiplos tons, na folha plana que dançou na tina de água e de químicos, dando a esse momento revelador a tridimensionalidade sugerida por camadas de luz que erradamente – e para facilitar as coisas – dizemos ser uma fotografia a preto e branco. Mas não! Há uma gama infinita de cinzentos e de luz branca que se solta a cada olhar mais atento – e é aí, precisamente, que nos deparamos com o tal pó de magia.

Cada uma destas fotos é como um filme estático e conta-nos uma história em camadas sucessivas. Uns vislumbram-na, simplesmente. Outros interpretam-na e têm a arte, e saber, de a descrever, estabelecendo-se nestas páginas um curioso encontro de narrativas. Como um livro não é simplesmente uma colagem de palavras ou de frases, antes um bailado de letras que só alguns sabem coreografar com génio e criatividade, também uma fotografia, captada assim, não é apenas o premir do dedo que dispara o clique mágico. Cada instante tem a sua história para contar. E quanto mais atenção dispensamos ao olhar, mais percebemos que há sempre um outro – e novo – pormenor a descobrir.

Como se vê e comprova neste magnífico projecto, cada imagem sussurra uma mensagem e desperta-nos uma acção. E cada autor, livremente, deixou-se conduzir pelas palavras que se soltam neste olhar captado na cidade de outros tempos.

Nestes instantâneos de Bernardino Pires (que se dizia fotógrafo amador) há sempre elementos que denunciam a arte de quem domina as técnicas, pois tudo tem uma escala própria e vê-se o equilíbrio de linhas e pontos de fuga. É a natureza simples dos momentos breves, que nos encanta porque parece ser invisível a quem apontou a objectiva. Só assim, com uma sensibilidade de artista, podemos estar agora a contemplar com surpresa – e admiração – estas imagens do Porto que já não existe tal e qual, das gentes que ganharam a eternidade nesse fugaz encontro com o fotógrafo, verdadeiro caçador de fragmentos de uma cidade a bulir de vida, anónimos de passagem, sem tempo para olhar muito nesse cruzar de raspão com o instante.

Tanto tempo depois, o que nos seduz é a qualidade estética de Bernardino Pires. Por detrás da câmara, ele enquadrou, posicionou-se na altura certa, conseguiu o olhar, ajustou-se no equilíbrio narrativo com a paisagem. Fica ali o sorriso irrepetível e espontâneo, uma preocupação pensativa que se sente num rosto, o tempo certo da velocidade de um caminhar que não se mexeu mais dali para a frente, fixando-se no negativo que – imagino eu – o fotógrafo tratou com delicada precisão no laboratório, reenquadrando melhor ainda, testando e ajustando os químicos para escurecer no tom, ou então dar-lhe mais luz. Isso era o domínio da técnica. Mas o artista estava na essência da imagem, na comunicação registada desde o momento em que imaginamos Bernardino Pires, discreto e calmo, a percorrer os locais com os seus figurantes ou protagonistas, anónimos contadores de histórias que hoje se reinterpretam nestas páginas.

Este livro revela-nos um grande fotógrafo do Porto até aqui pouco conhecido. A memória da cidade tem um novo contador de histórias agora celebrado nesta publicação. Um livro que é também a celebração da arte fotográfica, talvez ainda maior (e mágica) do que o cinema, porque tem algo de transcendente, da vida que fica amarrada naquele preciso instante da imagem fixa quando tudo continua a mexer na nossa imaginação.

Como escreveu Roland Barthes, “o que a fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez. Ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente.”

 

Mário Augusto

Em "A Cidade do Porto na obra

do fotógrafo Bernardino Pires"

 

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