Há qualquer coisa

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Há qualquer coisa na Rua das Pedrinhas que faz dela a quintessência da famosa Bila. É uma via obscura, perfilada por casas ao abandono, como sentinelas carunchosas, um carreiro por onde passam, faça dia ou faça noite, divindades sepulcrais. O terrível Nyarlathotep e o seu Olho. A Caçada Selvagem, a Wilde Jagd, a Cavalgada de Odin, o som de ossos e de cascos de cavalos a bater no empedrado. Quando a percorro sinto sempre um calafrio. E percorro-a diariamente, mesmo quando a bem dizer não necessito. Atrai-me a sua morbidez, como um destino a que não posso fugir. Como a morte. Nunca a beija o sol. Começa e acaba entre paredes. Dela não se vê um jardim, uma árvore, uma flor. Nasce, para quem vem de cima, na parede do tribunal, um prédio agoirento e frio, uma obra de granito pálido erguida por prisioneiros e habitada por scrooges espectrais, que nela condenam pobres às galés e atam vidas em incunábulos presos em fios de sisal. E desemboca, cem metros mais abaixo, a uns passos da reentrância lateral da Capela Nova, onde se deveria erguer a torre de Nasoni, mas onde não se ergue nada. Quando eu era criança viviam aqui amigas velhas da família, em segundos e terceiros andares que já então pareciam em ruína. Gente que é hoje toda morta. E havia uns gatos, há muito atropelados, e os filhos deles, entretanto apodrecidos em quintais abandonados, entre silvas, e os netos desses gatos, mortos igualmente com mazelas misteriosas. Não havia cães, que algo os afastava numa espécie de imperativo irrecusável. E havia um punhado de crianças enfezadas, com peitos devorados pela tísica, meninos que tossiam e se cansavam a jogar à bola, e meninas de rostos chupados e olhares sem graça. E dois adolescentes loucos. E havia por fim um albardeiro, contra o qual as nossas mães nos avisavam, um ogre sempre triste e inofensivo. E miasmas que brotavam da sarjeta.

 

Vila Real parecia ser, então, outros lugares, aparentemente mais risonhos. A Avenida, com a sua relva verde e os seus canteiros floridos. A Rua Central e a loja dos Três Vinténs, da mulher do senhor Miguel, com as montras cheias de brinquedos. O Largo em frente ao Tribunal, onde eu vivia, com o repucho da Maria da Fonte, uma mulher de bronze com a mão na anca em pose afirmativa. A Rua do Carvalho, de perspectiva ampla sobre a serrania do Marão. A Rua António de Azevedo, onde o meu pai tinha o seu Estabelecimento, e onde os meus amigos brincavam comigo, em tardes intermináveis, fazendo correr as caricas pela borda do passeio. Essa era então a parte luminosa da cidade, que eu julgava, na minha inocência pobre e ignorante, ser a verdadeira.

 

Mas não era. A parte verdadeira da cidade era a Rua das Pedrinhas. O resto da cidade era cenário. Como a vida.

José Costa Pinto