DEUS E JOB

   A 23 de Novembro de 1654, o teólogo e matemático francês Blaise Pascal teve uma experiência tão intensa e vívida que a registou por escrito e passou a transportar esse relato consigo, cosido à roupa que usava. O relato só foi descoberto depois da sua morte, e descrevia o cerne da experiência nas seguintes palavras "Fogo. O Deus de Abraâo, o Deus de Isaac, o Deus de Jacob, e não o dos filósofos e homens de ciência".
Talvez Pascal estivesse a contrastar a experiência vívida de uma presença dinâmica e pessoal com o Deus inferido de Descartes, que teve de ser invocado para assegurar que as nossas percepções sensoriais não nos estavam a enganar. O que Pascal queria dizer era que a crença em Deus se baseia em experiências humanas, principalmente na experiência que pessoas dotadas /ou iludidas) - os profetas - têm de uma presença avassaladora, terrível, provocadora e ardente. A Bíblia contém muito pouco  material que possa ser considerado filosofia. Há os escritos de "Sabedoria" e os sábios provérbios e a agonia perante o sofrimento de um homem inocente no livro de Job. Mas a história de Jahweh caminhando pelo jardim, perguntando a Adão onde é que ele está (e não deveria Jahweh sabê-lo de antemão, uma vez que, supostamente, sabe tudo?) é mais típica do que qualquer tentativa de propor uma doutrina sistemática de Deus, ou de recorrer a Deus para explicar porque é que as coisas acontecem.
O Deus do Antigo Testamento não explica nada. Esse Deus confunde, desconcerta, exaspera e, se tivermos sorte, consola. Mas qualquer sugestão de que Deus explica os mistérios da vida é completamente abalada pelo livro de Job, que encara todo esse género de "explicações" como obra dos inimigos de Deus, os "amigos" de Job que constantemente lhe oferecem várias explicações plausíveis para a causa do seu sofrimento. Job rejeita todas estas explicações e, para o escritor, é óbvio que todas as tentativas de explicação são fúteis.
Job acaba por ser confrontado com uma visão de Deus vindo do "seio da tempestade", que simplesmente o reduz a um aterrorizado silêncio. "Os meus ouvidos tinham ouvido falar de ti", diz Job, "mas agora vêem-te os meus próprios olhos. Por isso, retracto-me e faço penitência" (Job 42,5-6). Não há nenhuma explicação, nenhuma resposta: só a tempestade e uma visão do poder insondável de Deus; só a consciência da insignificância humana e o mais completo abandono à misericórdia de Deus.
Todavia, o livro de Job foi alvo de muita reflexão. A experiência final de Job é de um Deus que criou toda a  existência e que pergunta: "Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra?". A razão pela qual Deus fez as coisas da forma como as fez pode ser uma questão que não tem resposta. Mas existe a crença de que há um Deus que tem poder sobre tudo o que existe, e é por isso que Job não diz "Eu não sei absolutamente nada sobre ti". Ele diz "Sei que podes tudo" (Job 42, 1). Na verdade, aqui reside um dos poucos enunciados doutrinais do Antigo Testamento - o enunciado de que Deus é omnipotente, capaz de fazer tudo. Mas como o poderemos saber, excepto pela reflexão sobre a natureza dos deuses? E como podemos saber exactamente o que isso significa, excepto utilizando a razão o melhor que nos for possível para aclarar as suas implicações e pressuposições?
Assim, a crença em Deus pode não ser fundamentada na razão, como se fosse uma hipótese para explicar porque é que o Universo é como é. Mas a razão tem que trabalhar sobre as experiências humanas que dão rigem à crença em Deus, para tentar selecionar quais as experiências fiáveis e credíveis. Depois, tem que tentar perceber qual é a ideia de Deus (ou de  uma qualquer outra realidade experenciada religiosamente) que está implícita em tais experiências. E tem que tentar perceber como é que essas ideias se relacionam com outros conhecimentos do mundo, derivados de outras formas de experiência humana. É muito trabalho para a razão, mesmo se vier com  um aviso a dizer que os caminhos de Deus estão, em última  análise, para além da compreensão humana.
 
ANTARCO