Coisas….

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Ontem, passeando no ikea, apercebi-me de que uma parte considerável dos objectos que por lá se vendem, às vezes por preços irrisórios, podem ser usados, com alguma vantagem, para fins diferentes dos previstos. Por exemplo, uma estante para livros, de 25 euros, pode ser utilizada como armário de dispensa. Ou uma sapateira, de 30 euros, colocada na cozinha para arrumar a fruta, os legumes e as azeitonas.

Percebem a ideia. Chama-se zen. E hoje de manhã deparei-me, lendo um livro que não vos interessa, com outra aplicação curiosa do mesmo princípio. Só que, em vez de peças do ikea, que são objectos materiais, agora trata-se de usar conceitos e ideias, que podemos deslocar da sua aplicação original para explicar eventos de uma outra natureza. Refiro-me aos “Cargo cults”, esse curioso e peculiar fenómeno religioso do terceiro mundo, assim baptizado por alguns antropólogos no século passado.

Um rápido resumo do fenómeno, para entenderdes melhor a coisa e a sua novel aplicação:

Os “Cargo cults” surgiram na Melanésia na época do domínio colonial europeu, na segunda metade do séc. XIX e na primeira metade do séc. XX. Os membros dos “Cargo cults” acreditavam que os deuses e os seus agentes espirituais metiam mercadorias manufacturadas em caixas, rotulavam-nas com nomes e endereços de melanésios e carregavam-nas nos porões de navios e aviões para serem entregues aos seus destinatários. Quando a carga chegasse, os membros do culto seriam libertados para sempre da necessidade de trabalhar. Para induzir os agentes espirituais a entregar a carga, os devotos desses cultos realizaram rituais que envolviam desfiles militares, cerimónias com bandeiras e um cumprimento extremamente meticuloso das regras de organização do clube.

Como preparação para a entrega prevista da carga, os ”Cargo cultistas” construíram cais, pistas de aterragem e grandes armazéns. Eventualmente, o fracasso da chegada da carga foi atribuído à malícia dos europeus, que, segundo os líderes do culto, haviam interceptado as remessas, alterado os endereços e desviado a carga para outros lugares.

Esses cultos surgiram entre pessoas que tiveram contacto com a civilização industrial, e que viam como os colonizadores ocidentais recebiam bens manufacturados – mas não sabiam nada e muito menos conseguiam entender a natureza do processo industrial de fabricação e de comércio que criara esses bens e os trouxera às suas ilhas. Em síntese: viam e cobiçavam o produto, mas desconheciam o processo.

Fixando-se em alguns aspectos do comportamento dos europeus, interpretaram-nos como procedimentos rituais para obter bens materiais dos deuses. Nada mais seria preciso. Fracassaram, claro. Mas o fracasso não foi atribuído aos deuses, nem aos membros dos cultos. Só podia ser obra dos brancos.

E agora, amigos, vamos ao momento zen. Não vos parece que também por cá, nesta querida ilha tropical, temos os nossos ”Cargo cults”, com os nossos chefes, os nossos rituais e as nossas orações prescritas?

Os ”Cargo cults” explicam, entre nós, muito mais do que se pensa, incluindo ocorrências que vão dos evidentes Mamadou e Joacine aos eleitores socialistas, os quais, como se sabe, acorrem de quatro em quatro anos aos lugares do culto e enchem umas urnas com ofertas votivas aos deuses (também chamadas ‘votos’). Ora pensem lá um pouco, “fora da caixa”, como às vezes se diz. Neste caso literalmente, pois é de caixas que se trata.

Bom subsídio de Natal.

José Costa Pinto

 

https://en.wikipedia.org/wiki/Cargo_cult?fbclid=IwAR3Foi-ShY2qPacBtimy9Kene1zAks63RaQQ2gQzMa2vrs47uyNMoEwqBsw