BAÇAIM, A CAPITAL DO NORTE DO ESTADO PORTUGUÊS DA ÍNDIA II.

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Arquitectura civil e religiosa.

 

Baçaim, como segunda cidade mais importante do Estado Português da Índia, viu crescer dentro dos seus muros edifícios religiosos de, praticamente todas as ordens que militavam no Oriente, além das inevitáveis igrejas paroquiais e, obviamente, imóveis destinados à Câmara, ao Senado, às tropas e às autoridades civis e militares. Depois de vermos a arquitectura militar, passamos hoje a uma análise breve das ruínas do património remanescente. A época de ouro de construção foi a que correspondeu ao tempo da Dinastia Filipina, da qual se conservam importantíssimos vestígios. Como a urbe não foi ocupada após a conquista pelos maratas em 1739, as igrejas, conventos e colégios mantiveram-se de pé, sendo apenas vítimas do tempo e dos rigores do clima.

Dos documentos mais antigos destaca-se a carta de 1546, passada em Almeirim, pela qual D. João III ordenou a D. João de Castro, que mandasse fazer a igreja de São José, dentro da fortaleza de Baçaim. Essa igreja ainda hoje existe. Em 1618 foi vítima de um temporal que assolou a cidade e que destruiu muitos edifícios. Este foi um dos que mais sofreu, ficando sem a cobertura do corpo e parte da torre. Esta notícia é importante, para a datação das obras. O seu plano é relativamente simples: uma torre na frontaria, conformando, no plano térreo um nartex abobadado, à direita do qual fica a escada de caracol que comunica com o andar superior e com os sinos. O corpo é de uma nave única com um transepto falso formado por duas capelas, sendo mais profunda a que fica do lado da fortaleza primitiva. A  capela-mor é muito ampla, rectangular, comunicando para uma sacristia e para outra dependência bastante profunda, onde há uma poterna que dá para dentro do recinto fortificado. A torre da frontaria é alta, com quatro andares,  fazendo-se a entrada por um nartex aberto; este esquema  é o mesmo que encontramos na igreja do Rosário de Goa e que foi comum, no Sul de Portugal, desde a época de D. João III. Apesar da ruína em que se encontra, pode ver-se que era uma construção robusta e bem planeada, fruto de uma reforma geral datável dos anos em torno a 1600. A capela-mor tem um belo abobadamento às quartelas, alto e de bom desenho maneirista; a parede fundeira já não existe. Outro elemento de bom desenho é o portal lateral do flanco virado à rua pública, de irrepreensível desenho maneirista, com comunas estriadas sobre pedestais a cingir o vão e a suportar um discreto entablamento direito. É curiosa a varanda alta com arcos de cantaria que fica ao nível da ligação com a fortaleza quinhentista. Belo é o abobadamento da capela de transepto, intacto, com quatro calotes conformados por discretas nervuras.

Outra das igrejas paroquias era a igreja de Nossa Senhora da Vida que nasceu encostada aos muros da fortaleza primitiva e com a qual tinha ligação. É mais pequena do que anterior, com uma frontaria muito simples, plana, em que avulta um portal maneirista muito desenvolvido, com dois pares de colunas sobre pedestais a cingir o vão de volta perfeita. O desenvolvimento do entablamento faz com englobe um janelão que iluminava o coro-alto. Como as restantes, tem corpo de nave única e cabeceira também só com uma capela dotada de forte abobadamento às quartelas. Do lado da fortaleza, num registo alto, abrem-se uma série de janelas de sacada que comunicam com o adarve e serviam, para se assistir daí aos serviços religiosos. Do outro lado o muro é dotado de amplas e altas janelas com molduras de cantaria bem aparelhada.

O convento de São Domingos foi fundado em 1552, quando frei João Noé foi a Baçaim, para aí começas as obras de uma residência, que estava a ser dirigida por frei António do Porto, e que deveria ficar pronta no ano seguinte. Tal parece não ter acontecido, pois a 27 de Janeiro de 1557 ainda faltava acabar, pelo menos a capela-mor. A grande reconstrução deve ter começado após o já citado temporal de 1619. É a maior das construções religiosas que se conserva na cidade. Dentre a verdura, destaca-se a altíssima torre, colocada entre a capela-mor e o ângulo do gigantesco claustro. A entrada  faz-se por um pequeno adro onde, se abrem duas portas, uma para o templo e outra para o convento. A igreja tem plano rectangular, com uma grande e alta nave  com quatro pequenos arcos capelas, nos flancos, dois de cada lado, uma porta na parede sul e uma capela-mor que é quase da largura total do corpo. Da nave nada resta da cobertura, mas na capela-mor são visíveis os arranques da abóbada de berço esquartelada, não muito diferente da igreja de São José. O portal lateral é uma das melhores obras clássicas da Índia, traçado com a mais imponente das dependências é o claustro de que restam as paredes exteriores. Este imenso quadrilátero tinha quatro amplas naves, a baixa abobadada e a superior dotada de arcadas, para o exterior. Há uma comunicação directa para a igreja e mais duas, para a portaria e para a torre sineira.

Sabemos por documentos que consultámos que a igreja da Companhia de Jesus estava em obras em 1558, continuando-se por mais alguns anos, sendo até possível que a uma primeira e mais modesta construção se tivesse sucedido a que viria a ser a definitiva, e da qual conhecemos o estado em 1564. Na carta geral desse ano, o padre Francisco Cabral dizia que as obras materiais iam muito adiantadas, e que nesse ano se acabara um lanço de cubículos. A igreja tinha a capela-mor acabada, das melhores que havia na Índia, e que a abóbada era “obra romana”, ou seja, clássica.

Se é verdade que não conhecemos o autor ou autores da traça da igreja, claustro, portaria e demais dependências do colégio da Companhia, sabemos que foram os responsáveis pelas obras, pelo menos em certas ocasiões. Pode afirmar-se com segurança que em 1565 era seu mestre o irmão Gaspar de Araújo, um jovem construtor com apenas vinte e cinco anos de idade, que era coadjuvado nessa tarefa por João Nogueira. Os contactos com mestres construtores de outras cidades e fortalezas eram constantes, e nessa altura estava em Baçaim o irmão João Gonçalves que viera de Goa, para adquirir colunas, para as obras de São Paulo, já que a pedra da região era a melhor de toda a costa. Só com a visita de Alessandro Valignano é que as obras tomaram o rumo definitivo, acrescentando-se mais de dois metros de altura, e pedindo o concurso do mestre de fortificação que então aí estava a trabalhar. O templo ficou então coberto de madeira, nunca vindo a receber abobadamento na nave.

A frontaria e o portal principal foram feitos com o dinheiro deixado pelo capitão de Diu D. Duarte de Mello. É curioso notar que o arquitecto Ambrósio Argueiros deixou também  2000 pardaus, para as obras do colégio, o que pode indiciar que ele estava a dirigi-las quando fez o seu testamento. A igreja abre-se para um adro donde se acede também à zona colegial. Se a estrutura da frontaria é pobre, já o seu grande portal se distingue, pela erudição do tratado e pela excelência do talhe. Lembremos que Baçaim não só possuía boa pedra como também era um local onde abundavam os construtores habilitados que, daqui, partiam, para outras praças do norte e até da costa do Malabar. O pano é rectangular, com uma terminação redonda. O portal define o vão da entrada por dois pares de colunas da ordem coríntia, com fustes lisos e apoiadas sobre pedestais. Um enorme janelão rectangular é moldurado com generosidade por um conjunto de rótulo e duas pilastras de cada lado, tudo sobrepujado por um óculo redondo. Ao lado fica a portaria do Colégio também dotada de um elegante portal, mais simples, uma evocação “serliana”.

A igreja é muito ampla, larga, comprida e alta, com a capela-mor abobadada. São generosas as aberturas, a dois níveis, em altura, o que permite grande iluminação. Pela análise que fizemos dos muros, vê-se que estes foram dotados de um grande lambril de azulejos de tapete de fabrico lisboeta, de meados ou já da segunda metade de Seiscentos. A capela-mor tem uma abóbada de meio canhão esquartelada de desenho maneirista. A cobertura da nave é recente e nada tem a ver com a original. No flanco direito do templo abre-se a porta que comunica com a zona residencial, organizada em torno do tradicional pátio de dois andares. Só se conserva o andar térreo, com arcarias da ordem toscana a delimitar a quadra, elegantes, mas obra de mestre menos habituado à arquitectura erudita europeia. A existência do segundo piso adivinha-se e comprova-se pelos muros exteriores e era comunicante com as outras partes do colégio. Esta casa dos padres da Companhia de Jesus tinha telhados com forte inclinação, e como as das outras congregações, uma alta torre que  tinha mais função de miradouro do que a tradicional de albergar os sinos.

O convento da Anunciada da Ordem de Santo Agostinho teve origem numa igreja da mesma invocação que D. frei Aleixo de Meneses doou aos padres dessa religião em 1597. O estabelecimento foi transferido de sítio em 1621, mas em 1676 voltou ao lugar inicial, fazendo-se uma nova e mais ampla igreja. Pouco resta da construção; apenas uns quantos muros, o arranque de arcarias do claustro e parte de uma abóbada esquartelada que julgamos ser da capela-mor. No entanto, estes vestígios permitem datar as obras da primeira metade de Seiscentos e testemunhar a intervenção de um arquitecto e de mestres construtores de grandes recursos.

O convento de Santo António dos franciscanos só em 1552 se começou, apenas com esmolas e pouco mais; no entanto, uma delas, do rei D. João III, foi de 3000 pardaus. São Francisco conserva-se bastante bem. Em planta, temos a igreja com um átrio aberto, idêntico ao que vimos no templo da mesma ordem, em Diu, donde se passa por uma tripla entrada ao interior, amplo, bem lançado, com semelhanças evidentes com São Francisco de Goa. O coro-alto assenta sobre um arco em asa de cesto, embora a abóbada respectiva tenha desaparecido. A nave já não tem abóbada e também não tem transepto, abrindo-se, em cada flanco, um conjunto de cinco capelas comunicantes entre si. Os arcos são de cantaria muito bem talhada, toscanos e simples e as abóbadas de meio canhão rebocado. A mor, no entanto, tem uma abóbada de meio canhão, mas de pedra e às quartelas. Muitas das dependências conventuais mais não têm do que a base dos muros, mas ainda assim é possível reconstituir a sua estrutura. Melhor está o claustro principal, idêntico ao dos jesuítas, da ordem toscana simplificada, com colunas exentas e independentes a sustentar a arcaria. Teve também dois andares.

A Misericórdia de Baçaim foi fundada em 1540, mas oito anos depois, pela pobreza dos habitantes, continuava a viver no maior dos apertos. São vários outros os edifícios de carácter doméstico ou público que se conservam. Algumas residências das ruas principais que atravessavam do sertão ao mar ficaram com as paredes em pé e alojavam as famílias médias da cidade, já que as mais nobres possuíam pequenos palácios. São construções sólidas, de um só piso, embora ligeiramente alteado em relação à rua, acedendo-se às portas por elegantes escadas laterais que propiciavam a criação de um patamar, em tempos alpendrado.

A Casa da Câmara é o mais importante, parecendo um palácio ou município de uma importante cidade ibérica. O seu arquitecto tinha grande capacidade e era um homem erudito. Constituem-na dois andares, tendo o térreo uma bela arcaria de cantaria aparelhada, através da qual se dava o acesso quer às zonas térreas de serviços, quer ao andar nobre, através de uma muito bem lançada escada lateral. Para a praça abria-se uma grande varanda, a um tempo funcional e cerimonial. Já está em pior estado a Casa do Senado, situada junto ao mosteiro de São Domingos. A fachada também tratada com cantaria aparelhada e os vão debruados de obra toscana permitem conjecturar que estamos perante um edifício que, nos seus melhores tempos, ostentava uma traça do bom classicismo português.

Os responsáveis pela Ordem de São João de Deus, dentro da uma política assistencial, decidiram fazer um hospital em Baçaim, e disso deram conta ao vice-rei que, por sua vez o comunicou ao monarca. Também o governador desta praça, D. Rodrigo da Costa, se envolveu no processo e existe correspondência enviada para Lisboa, onde se esclarece que, em Janeiro de 1691, já tinham sido compradas umas casas situadas em frente de Santo Agostinho, para se instalar o hospital, e outras casas nobres, para fazer nelas um hospício.

                                                                                                                                                                                                                                                     Pedro Dias