O Sorriso das Pétalas Amarelas – O Cavalo Azul

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O ventre da terra do meu quintal pariu um cavalinho azul. Ali mesmo juntinho às sardinheiras que cresceram desmesuradamente e que expunham flores de múltiplas cores, talvez com propósito premonitório, para que as suas sombras o abrigassem dos calores que por ali se faziam sentir com a frequência das indigestões climatéricas. E porque por ali não faltava pasto tenrinho e havia uma nascente de onde a água brotava em fiozinhos de prata, cristalina e fresquinha, aglomerando-se num minúsculo depósito circular onde desembocavam.

Quando me apercebi da existência do animal, já ele era um cavalinho extrovertido, conhecedor de todos os recantos do espaço, que troteava pelo quintal com uma postura serena, digna de regedor do seu pequenino reino, relinchando afinado como se de melodias ensaiadas com maestros se tratassem. Sorridente. Feliz. Tinha um galopar que se assemelhava a um género de bailado clássico, muito bem adestrado. Nesse momento, ao ver-me pela primeira vez, galopou rápido na minha direcção, como que para se anunciar.

Um cumprimento inesperado: duas lambidelas, uma em cada um dos lados da minha face, e uma “patadinha” na minha perna lesionada – devido a uma inoportuna rotura no menisco. E logo ali nasceu uma amizade que perduraria. Depois correu para debaixo da sombra das sardinheiras de tamanho volumoso e acenou com uma das suas patinhas dianteiras, como que a apelar para eu me dirigir para junto dele, abrigando-me da braveza da canícula, para beneficiar da frescura proporcionada pela sombra prazenteira.

Afeiçoei-me de tal forma ao animal que dei por mim a dedicar-me ao quintal com mais entusiamo, e a atender ao seu micro ecossistema com redobrada satisfação, até porque o tempo livre da minha reforma assim o proporcionava. E comecei a ver por ali uma beleza que nunca antes vira. Em tudo. Como bom carpinteiro que sempre fui, comecei a fazer por ali pérgulas onde as plantas mais vistosas poderiam descansar as suas hastes sempre e sempre a crescer para mais florirem, construí canteiros com sulipas aonde nasceriam novas plantas, embelezei a zona onde desembocava a água da nascente com pedra rústica ofertada pela própria quinta, e até remodelei e ampliei o casario existente apesar de a minha viuvez disso não necessitar. Mas sempre viriam os filhos e os netos pelo verão, que também haveriam de gostar da reformulação e da ampliação e do adolescente alindamento do quintal.

Numa noite serena de estrelas cintilantes, estava o cavalinho azul a descansar junto ao pequeno «tanque» que reconstruí para acumular a água fresca e pura que a nascente que se situava num pequeno horto da quinta fazia o favor de nos ofertar sem pedir algo em troca, relinchou o cavalinho no seu jeito terno e aproximou-se de mim, roçando o seu pelo curto, mas fofo, em meu redor. E uma vez mais ofertou-me umas lambidelas suaves na face e voltou a dar-me uma marradinha, com uma das suas patitas dianteiras, na minha perna que, prodigiosamente, ficou de imediato curada. Como não gemi de dor, relinchou o cavalinho de alegria e desatou numa correria pela quinta como que a desejar uma boa noite ao arvoredo e às sardinheiras e à nascente de água e a tudo o mais. E não se esqueceu de olhar as estrelas no céu, relinchando a desejar-lhes, igualmente, uma boa noite - intuí.    

Numa manhã - brava de calor - fui visitado por um casal vizinho e amigo, gente jovem, que tinha um filho que, infelizmente, sofria da Síndrome de Down. Levei-os orgulhoso a ver a quinta remodelada e rejuvenescida, aproveitando a oportunidade para confirmarem, também, o milagre de eu ali ter um cavalinho azul. Para espanto de todos, aproximou-se de imediato o cavalinho do menino e junto a ele prostrou-se, como que a convidá-lo a sentar-se no seu dorso azul da cor do céu quando estão ausentes as nuvens. Que foi o que aconteceu. Depois, o cavalinho levantou-se sereno, pausado, o menino agarrado ao seu pescoço, e foram os dois dar um «girinho» pela quinta, felicidade estampada no rosto do menino e no focinho do cavalinho. No final, chegada a hora das despedidas, percebeu-se que o menino haveria de pretender regressar, até porque os pais interpretaram, inesperadamente, afectos incomuns entre o filho e o animal.

E o menino regressou. Uma e outra vez. E mais umas quantas. E por aí a fora. E os pais desabafaram que o cavalinho tinha dotes terapêuticos, que auxiliavam a afastar a tristeza do menino e o tornavam mais empenhado nas tarefas possíveis de ele executar.

A notícia correu célere, à velocidade da luz, como alguns argumentaram. Até que começaram a pretender visitar a quinta os pais de outros meninos que sofriam da mesma Síndrome, ou de outras. E, por milagre, o ventre da terra daquela quinta foi parindo mais cavalinhos azuis. Para que todos os meninos especiais que necessitassem do auxílio e da alegria que os cavalinhos azuis lhes proporcionavam, deles pudessem usufruir.

E assim nasceu a lenda da quinta “O Cavalo Azul” - que pode até acontecer que nem seja bem uma lenda.  

Luís Gil Torga

(Nota: este microconto é dedicado a todos aqueles que, espalhados pelo mundo inteiro, dedicam parte das suas vidas em apoios sociais de realçar, no que toca à solidariedade, sem fins lucrativos e, muitas vezes, ignorando parte do tempo necessário e imprescindível para as suas próprias vidas e famílias. Solidariedades que, como o constatam tantos e tantos exemplos, são «raríssimas» e ignoradas pela maior parte dos próprios Estados - que fingem ignorar apoios mais do que justos e merecidos a quem deles efectivamente necessita, ou os aplicam indevidamente)