O guarda-freio

 

Era o sonho desde que chegou ainda menino à cidade. Ao conseguir realizá-lo, gostava sobretudo de levá-los, pela mão segura, a subir a Avenida Sá da Bandeira. De ir com o olhar atento ao brilho dos carris e com o ouvido alerta às conversas das empregadas domésticas e das senhoras idosas que transportavam os sacos e os cestos com as compras da praça. Gente que falava da carestia da vida, do reumático, das dores provocadas pela ausência dos familiares mobilizados para África e do frio húmido dos últimos dias.

À noite, furava o nevoeiro e o silêncio das ruas e avenidas adormecidas, esperançado em captar passageiros na hora de saída dos cinemas, perto da meia-noite, sem poder ajudar os caloiros a tentar escapar ao rapanço pela troupe de capas negras, a correr no seu encalço.

Hoje, é um dos últimos guarda-freios a poder recordar tudo isto: «Não sei se é bom, se é mau. Ainda consigo conduzir de pé. Manhã cedo, saio da minha estação de recolha e neste caminhar lento com o carro de mão para o meu quintal, limpo temporariamente tudo o que me apaixonou um dia e que ainda me dói à noite pelo corpo todo, como uma dor fantasma de partes de mim que se perderam: os carris, a alegria dos dias e os elétricos.»

Pinto dos Santos Toni 

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