Mosteiro de Santa Cruz

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NOTA PRÉVIA

1. UMA RARIDADE BIBLIOGRÁFICA.

Na presente edição reproduz-se o único exemplar conhecido da «Descripcam e debvxo do moesteyro de sancta Cruz de Coimbra» [doravante designada por «Descrição»], impressa em 1541 nas oficinas tipográficas do próprio Mosteiro (1), exemplar atualmente conservado na Greenlee Collection (2) da Newberry Library de Chicago.

Trata-se da primeira descrição, historicamente conhecida, do mosteiro crúzio conimbricense, reconstruído a partir de 1507 por ordem de D. Manuel I e reformado no seu funcionamento e disciplina por Frei Brás de Braga, para o efeito nomeado por D. João III em 1527.

A «Descrição» consta de uma carta dirigida ao Cardeal António Pucci, originariamente escrita em latim por D. Francisco de Mendanha e vertida para português por D. Verísssimo, um e outro cónegos de Santa Cruz de Coimbra, destacados em 1538, por Frei Brás de Braga, a pedido de D. João III, para procederem à reformação do Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, donde datam os seus escritos.

A «Descrição» cedo se tornou obra de grande raridade, não sendo mencionada nos catálogos das edições saídas dos prelos do Mosteiro de Santa Cruz elaborados por António Ribeiro dos Santos («Memória para a história da tipografia portuguesa do século XVI», Lisboa, Academia Real das Ciências, 1812, págs. 86-92), por Joaquim Martins de Carvalho («Apontamentos para a História Contemporânea», Coimbra, Imprensa da Universidade, 1868, págs. 277-281) e por António Gomes da Rocha Madail («Primícias da arte tipográfica em Coimbra», Coimbra, Coimbra Editora, 1942), tendo, durante largos períodos de tempo, sido dada por completamente desaparecida.

O conhecimento do seu teor passou, ao longo dos séculos, a ser feito indiretamente, através da sua transcrição (infidelíssima, como se verá) por D. Nicolau de Santa Maria, nos capítulos XXII e XXIII do Livro VII da Segunda Parte da «Crónica da Ordem dos Cónegos Regrantes do Patriarca Santo Agostinho» (Lisboa, Oficina de João da Costa, 1668), que erradamente indica ter sido a carta originalmente escrita em italiano, ter sido D. João III o promotor da tradução e da impressão e datar esta de 1540.

Estes erros foram reproduzidos por Diogo Barbosa Machado, no artigo dedicado a D. Francisco de Mendanha («Biblioteca Lusitana», tomo II, Oficina de Inácio Rodrigues, Lisboa, 1747, pág. 203), embora na nótula sobre D. Veríssimo (tomo III, 1752, pág. 779), tenha corrigido a data da impressão para 1541.

Inocêncio Francisco da Silva (»Dicionário Bibliográfico Português», tomo VII, Lisboa, Imprensa Nacional, 1862, págs. 416-417) confessa nunca ter visto este "raríssimo opúsculo, de que não aparece exemplar algum, nem memória de que o houvesse em local conhecido", e duvida que Diogo Barbosa Machado tivesse tido modo de o consultar. Também Jorge Carlos de Figanière («Bibliografia histórica portuguesa», Lisboa, Francisco Jorge Ferreira de Matos, 1851, pág. 140) reconhece não ter descoberto nenhum exemplar desse raríssimo opúsculo, a cujo conteúdo acedeu através da sua reprodução na «Crónica da Ordem dos Cónegos Regrantes».

Finalmente, em 1890, com a publicação do artigo de Sousa Viterbo, “O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (Anotações e Documentos)”, na revista «O Instituto», (Coimbra, ano 37.º, n.º 9, março de 1890), foi dado conhecimento do aparecimento de um exemplar do opúsculo, caracterizado pela falta da primeira folha (frontispício), pertencente ao bibliófilo e colecionador Jerónimo Ferreira das Neves (Sobrinho) (3), que lhe facultou a sua consulta e possibilitou, pelo confronto com a pretensa "transcrição" feita por D. Nicolau de Santa Maria, a demonstração de que este havia gravemente adulterado o original, amputando-lhe partes importantes e acrescentando outras de sua lavra. No citado estudo, Sousa Viterbo assinala as principais adulterações perpetradas pelo inescrupuloso cronista crúzio (4), tendo-se então coibido de publicar integralmente o original porque Venâncio Augusto Deslandes (5), a quem Ferreira das Neves também facultara a extração de uma cópia, se propusera editá-la na Imprensa Nacional, de que era administrador-geral, o que não chegou a concretizar.

De novo se perdeu o rasto da raríssima edição da «Descrição».

Foi Israël Salvator Révah (6) quem, em estudo publicado no volume XXIII do «Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra» (de que se extraiu separata, Coimbra, 1957), deu a conhecer a existência e reproduziu fotograficamente esse exemplar único. o mesmo que pertencera a Ferreira das Neves e que fora comprado pelo livreiro Charles Chadenat (1859-1938), de  Paris, onde, na primavera de 1954, foi adquirido, inserido num conjunto de opúsculos portugueses, para enriquecer a Greenlee Collection (7).

É esse exemplar, caracterizado pela falta do frontispício, único cuja existência se conhece, que se reproduz nesta edição.

2. O MOSTEIRO DE SANTA CRUZ NOS REINADOS DE D. MANUEL I E DE D. JOÃO III: REEDIFICAÇÃO DA IGREJA E CONVENTO E REFORMAÇÃO DA CONGREGAÇÃO.

Duas visitas régias a Coimbra, espaçadas de 25 anos, viriam a revelar-se decisivas para históricas alterações da cidade e, em especial, do Mosteiro de Santa Cruz: a primeira, em novembro de 1502, de D. Manuel I, a caminho de Santiago de Compostela, acompanhado pelo seu capelão-mor, D. Pedro Vaz Gavião, bispo da Guarda; a segunda, em junho de 1527, de D. João III, fugido da peste que grassava em Lisboa.

Chocado com a degradação da antiga capital do Reino (????, com a velha ponte afonsina em grande parte arruinada e quase engolida pelas aluviões do Mondego, os Paços Reais abandonados, a modéstia das sepulturas dos primeiros Reis, em contraste com o brilho do panteão da dinastia de Avis, na Batalha, D. Manuel I decide, entre outras beneficiações, reparar e reconstruir a ponte, dilatar o terreiro da Portagem, criar o Hospital Real, na Praça de S. Bartolomeu, e ampliar o antigo Hospital dos Lázaros, fora de portas, à saída norte da cidade.

Particularmente importante foi a intervenção no Mosteiro de Santa Cruz, para cuja radicalidade contribuiu um conflito com a Santa Sé, onde se revelou todo o génio político do Rei Venturoso.

Fundado em 1131 por D. Telo e mais onze companheiros, a congregação de Santa Cruz adotou no ano imediato a Regra de Santo Agostinho e obteve, em 1135, do Papa Inocêncio II, dependência direta da Santa Sé, com isenção de intervenção do bispo de Coimbra. O seu governo, durante séculos, coube a priores-mores perpétuos (o primeiro dos quais foi D. Teotónio), eleitos vitaliciamente pelos restantes cónegos, sendo coadjuvados, na administração corrente da casa, por cónegos eleitos trienalmente: os priores castreiros.

As avultadas rendas usufruídas pelo Mosteiro de Santa Cruz tornavam particularmente apetecível o lugar de Prior-mor, o que levou o Papa Júlio II a determinar que, quando cessasse funções D. João de Noronha, último prior-mor perpétuo eleito pelos seus pares, os cónegos crúzios elegessem, sob pena de graves sanções, como Prior-mor ao seu sobrinho D. Galiotto Franciotto de La Rovere, Presbítero Cardeal do título de S. Pedro «ad vincula». Falecido D. João de Noronha em 1505, os cónegos acataram a imposição pontifícia, dando posse do priorado ao sobrinho do Papa, representado pelo Núncio Apostólico em Lisboa, e elegeram prior castreiro a D. Brás Lopes. "Sentiu muito o Rei D. Manuel que o Papa nomeasse e desse o Priorado-mor desse seu Real Mosteiro sem seu beneplácito, e assim mandou o Prior castreiro D. Brás Lopes derrubasse e pusesse por terra a Igreja, Capítulo e Claustra, e com as rendas do Priorado-mor se fizesse de novo restaurar em melhor forma, e disso desse conta a Sua Santidade, que não esperassem lá por dinheiro algum, e ele também escreveu a Roma ao seu embaixador sobre o mesmo negócio. O Sumo Pontífice, pela carta que teve do Prior castreiro entendeu o lanço e ânimo do Rei; mandou logo ao Cardeal seu sobrinho desistisse e largasse o Priorado, o que ele logo fez, depois de o possuir estando em Roma por pouco mais de um ano, sem dele receber lucro algum. O mesmo Papa Júlio II, em satisfação de ter bulido no Priorado, passou um Breve «de motu proprio», no ano de 1507, ao Rei D. Manuel, no qual lhe concedeu a ele, e aos Reis de Portugal seus sucessores «in perpetuum», possam apresentar e dar da sua mão Prior-mor a este Real Mosteiro e aos demais da Ordem, como Padroeiros que dele são" (9).

Nomeou D. Manuel I como Prior-mor a D. Pedro Gavião, bispo da Guarda, seu capelão-mor, e no seu priorado, de 1507 até 1516, decorreu a primeira fase das obras de reconstrução do Mosteiro de Santa Cruz, sob a direção do arquiteto Diogo de Boitaca, com demolição da Igreja românica, e construção da atual, concluindo a fachada e a capela-mor, com os arcos laterais para albergar os túmulos dos Reis. Os trabalhos foram retomados em 1517, sob a direção de Marcos Pires, mestre das obras dos Paços Reais, com a reconstrução completa do Claustro do Silêncio. Em junho de 1520, D. Manuel I, acompanhado do seu herdeiro D. João, volta a Coimbra para presidir à tresladação dos Reis para as novas sepulturas, falecendo no ano seguinte.

A segunda visita de D. João a Coimbra ocorre em junho de 1527, já rei, com 25 anos de idade, e será decisiva para o futuro da cidade e do Mosteiro de Santa Cruz.

Às melhorias no património edificado infelizmente não correspondia aperfeiçoamento moral dos monges crúzios. O não cumprimento das regras agostinianas, designadamente a clausura, o silêncio e a castidade (10), chocaram o Rei, que, para corrigir a situação, nomeou como Reformador da Congregação a Frei Brás de Braga, monge da Ordem de S. Jerónimo. Esta escolha de um membro de ordem estranha desagradou profundamente aos crúzios, tendo muitos deles, dos mais graves e autorizados (entre eles o antigo prior castreiro, D. Bento Lopes), optado por abandonar o Convento. A aversão dos agostinianos para com Frei Brás de Braga persistiu ao longo do tempo: o cronista D. Nicolau de Santa Maria, ao transcrever cartas de D. João III pessoalmente dirigidas a Frei Brás de Braga, não hesita em rasurar o nome deste, substituindo-o por "Prior-Geral" (11) e D. Timóteo dos Mártires comete a proeza de, nas centenas de páginas da sua «Crónica», nem uma única vez citar o seu nome, tratando-o sempre por "Reformador Apostólico".

A Reformação da Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra foi iniciada por Frei Brás de Braga em 13 de outubro de 1527 e durou até 1545, ano em que nomeado bispo de Leiria. Ainda em 1527, D. João III, a sua solicitação, mandou vir da Universidade de Paris mestres de Gramática, Grego e outras Artes e Ciências, para nele ensinarem, tendo o êxito desta experiência sido determinante para a escolha, dez anos mais tarde, de Coimbra como o melhor local para onde transferir a Universidade portuguesa.

3. D. FRANCISCO DE MENDANHA.

Um dos principais colaboradores de Frei Brás de Braga, na reformação das congregações crúzias, foi D. Francisco de Mendanha, que ingressou no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra em 18 de janeiro de 1528, e comandou a missão de oito cónegos que, em 4 de abril de 1538, foi destacada para reformar o Mosteiro de São Vicente de Fora, tendo sido eleito seu primeiro Prior castreiro.

Segundo Diogo Barbosa Machado («Biblioteca Lusitana», tomo II, citado, pág. 203), D. Francisco de Mendanha "nasceu no lugar de Tavarede, junto da foz do rio Mondego, na província da Beira, sendo filho de João de Mendanha e de Isabel de Azambuja (12), ambos da mais qualificada nobreza de Coimbra, os quais o mandaram educar em casa de seu avô paterno, Francisco de Mendanha, assistente naquela cidade, em cujo obséquio lhe foi imposto o nome de Francisco no batismo, que, conhecendo a boa índole que o neto tinha para as letras, resolveu fosse estudar à Universidade de Paris (13), onde saiu eminente em Filosofia, Teologia e Direito Pontifício, em cuja Faculdade se graduou, além da notícia das línguas francesa e italiana, que falava e escrevia como a materna. Restituído à pátria, como tivesse seu avô passado a melhor vida, desenganado dos aplausos, que lhe podiam adquirir as suas grandes letras, recebeu o canónico hábito de Santo Agostinho no Real Convento de Santa Cruz, a 18 de janeiro de 1528 (...)."

Refere Joaquim Martins Teixeira de Carvalho (14), fundado em manuscrito de D. Marcos da Cruz (15), que D. Francisco de Mendanha "era homem culto, muito cioso da glória da sua congregação, de doce e alegre trato e por isso muito do favor de D. João III e da senhora D. Catarina, sua mulher".

De acordo com o cronista D. Timóteo dos Mártires, a missão de oito cónegos de Santa Cruz de Coimbra que Frei Brás de Braga instalou, em 4 de abril de 1538, no Mosteiro de São Vicente de Fora de Lisboa, para proceder à sua reformação, era integrada por D. Francisco de Mendanha, D. Manuel de Brito, D. Lourenço Leite, D. Paulo Gavião, D. Gregório Tavares, D. Veríssimo (o tradutor da «Descrição»), D. Simão e D. Miguel. A reação à chegada dos reformadores ainda foi mais radical que a dos cónegos velhos de Santa Cruz de Coimbra face ao "intruso" jeronomita: "nenhum dos cónegos antigos deste Mosteiro [de São Vicente] quis aceitar a reformação". Ficaram, assim, os reformadores sem matéria para reformar.

Em São Vicente de Lisboa, D. Francisco de Mendanha foi eleito Prior castreiro em 1538 e Prior trienal em 25 de maio de 1540, e reeleito neste cargo em 29 de setembro de 1546, tendo sido no decurso deste seu mandato que "D. João III escolheu doze mancebos nobres, virtuosos, modestos, de letras e industriosos, e os mandou recolher neste Mosteiro de São Vicente à obediência do Padre Prior D. Francisco de Mendanha".

Na qualidade de Prior de São Vicente de Fora, D. Francisco de Mendanha participou, em Coimbra, em 29 e 30 de julho de 1539, no 1.º Capítulo Geral da Congregação, posterior à Reformação, presidido pelo Reformador Apostólico Frei Brás de Braga, em que, pela primeira vez, se elegeu um Prior trienal para o Mosteiro de Santa Cruz, que, por inerência, seria Prior Geral da Congregação dos Mosteiros já reformados e unidos (os de São Vicente de Fora de Lisboa e do Salvador de Eclesiola, depois Grijó), tendo sido eleito D. Bento de Camões, natural de Coimbra, filho de António Vaz de Camões e de D. Guiomar Vaz da Gama. Ainda na qualidade de Prior do Mosteiro de São Vicente, participou D. Francisco de Mendanha no 2.º Capítulo Geral, de 2 e 5 de maio de 1542, que elegeu D. Dionísio de Morais (natural de Coimbra, filho de Simão de Morais e de Violante de Azambuja) novo Prior trienal do Mosteiro de Santa Cruz e Geral para a Congregação. Em abril de 1548, D. Francisco de Mendanha, prior do Mosteiro de São Vicente, presidiu ao 4.º Capítulo Geral, que elegeu para as ditas funções D. Filipe Pegado (em substituição de D. Afonso Pereira, eleito em 1545, no 3.º Capítulo Geral, a que D, Francisco de Mendanha não assistiu).

Regressado a Coimbra, foi, no 5.º Capítulo Geral, em abril de 1551, D. Francisco de Mendanha eleito Prior do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Geral da Congregação, funções que exerceu até 1554, sendo substituído, no 6.º Capítulo Geral, por D. Clemente da Silva, para, no 7.º Capítulo Geral, realizado em 7 de novembro de 1557, voltar a ser eleito para um último mandato. Já não participou no 8.º Capítulo Geral, realizado em 25 de abril de 1558, por se encontrar doente em Lisboa.

Faleceu em 17 de novembro de 1561.

No mandato como Prior Geral eleito em 1551, presidiu, como Cancelário da Universidade de Coimbra (funções que eram inerentes ao Priorado Geral de Santa Cruz) à colação do grau de Mestre em Artes, que recebeu D. António, filho do Infante D. Luís (16), e teve intervenção no conflito dos Crúzios com os Jesuítas, por estes terem reconstruído uma torre da muralha da cidade (na Couraça chamada dos Apóstolos por ser este o nome por que eram conhecidos os membros da Companhia de Jesus), junto à Porta Nova, aí abrindo janelas que se debruçavam precisamente sobre a claustra do Mosteiro de Santa Cruz (17).

4. D. VERÍSSIMO.

Para além da integração de D. Veríssimo na missão de oito cónegos de Santa Cruz de Coimbra que Frei Brás de Braga instalou, em 4 de abril de 1538, para procederem à reformação do Mosteiro de São Vicente de Fora em Lisboa, mais nenhuma notícia sobre ele se colhe nas «Crónicas» de D. Nicolau de Santa Maria e de D. Timóteo dos Mártires.

Apenas numa carta, de 25 de novembro de 1541, de Frei Brás de Braga para D. João III, D. Veríssimo é referido como, com a «Descrição», teria procurado "tirar (como diz São Jerónimo) naquela coisa pouca a ferrugem para escrever alguma de mais momento, e penso era sua intenção, com o favor divino, escrever depois de mais velho, reformado e posto mais em sossego, algumas lembranças que arremedassem crónica da piedade cristã de seu Rei e Senhor, para que sentia habilidade" (18).

Essa possível intenção nunca se concretizou, e deve D. Veríssimo ter recaído na "doença espiritual da ociosidade", que, em 1540, em São Vicente de Fora, o havia posto às portas da morte e de que se livrara, como confessa com tocante candura, ao usar do remédio receitado pelo "médico cristão" (S. Jerónimo) de exercer sempre alguma atividade (no caso, traduzir a «Descrição») para que o Diabo nunca o encontrasse desocupado.

Deve D. Veríssimo ter passado o resto dos seus dias "inútil como um cónego", no dito de Garrett, evocado por Sousa Viterbo, não sendo de excluir a hipótese de finalmente o irmos reencontrar, quarenta anos depois, caso seja ele o mesmo D. Veríssimo que, no último texto recolhido nesta edição, foi abandonado, com mais três ou quatro cónegos "velhos e doentes", "em miserável pranto", na Enfermaria do Mosteiro, quando ocorreu a debandada dos crúzios com a notícia da chegada a Coimbra, cerca de 8 de outubro de 1580, do exército de Filipe II, comandado por Sancho de Ávila, em perseguição dos apoiantes de D. António, com destaque para os de Santa Cruz.

5. CARDEAL ANTÓNIO PUCCI.

A «Descrição» é dedicada a António Pucci (Florença, 1485 - Bagnoreggio, 1544), considerado protetor da Congregação dos Agostinianos. Sobrinho dos Cardeais Lorenzo Pucci (Florença, 1458 - Roma, 1531, Cardeal dos Santos Quatro Coroados de 1513 a 1524) e Roberto Pucci (Florença, 1463 - Roma, 1547, Cardeal dos Santos Quatro Coroados de 1544 a 1547), António Pucci participou no V Concílio de Latrão (1512–1517) e foi nomeado, pelo Papa Leão X, Núncio Apostólico em Portugal (1513-1518) e na Suíça (1517-1521), Bispo de Pistoia (1518) e de Vannes (1529-1541). Em 1531 foi nomeado Cardeal, por Clemente VII, como titular da Igreja dos Santos Quatro [Mártires] Coroados. Participou no Conclave de 1534 que elegeu o Papa Paulo III e foi Bispo das dioceses de Albano (1542/43) e Sabina (1543/44).

Na sequência do exercício das suas funções de Núncio em Lisboa, tornou-se grande defensor dos interesses de Portugal junto da Cúria Romana, designadamente na longa batalha diplomática empreendida por D. João III para vencer as fortes resistências de Clemente VII e Paulo III ao estabelecimento da Inquisição em Portugal (19).

6. A PRESENTE EDIÇÃO

Na presente edição reproduz-se o único exemplar conhecido da «Descrição».

O opúsculo era composto de quatro cadernos de quatro folhas cada, num total de 32 páginas. Como já se referiu, desapareceu a primeira folha (frontispício). Na segunda folha consta, como prólogo, uma carta do tradutor ("Irmão Veríssimo") "aos Irmãos dos Mosteiros de Santa Cruz [de Coimbra] e do Salvador [de Eclesiola, depois Grijó]", datada de São Vicente de Lisboa, 21 de dezembro de 1540; o verso dessa folha tem por cabeçalho "EPÍSTOLA DO INTÉRPRETE". Na terceira folha surge a dedicatória da obra, pelo seu autor, D. Francisco de Mendanha, ao Cardeal António Pucci, datada de São Vicente de Lisboa, a 4 de setembro de 1540; no verso da terceira folha, aparece cortada parte da primeira linha. A partir da quarta folha, inicia-se a «Descrição e debuxo do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra»; no verso dessa folha, segundo Révah, um "lecteur (...) trés pudique (...), dans la description d'une fontaine [Fonte de Sansão], a jugé bon de rayer des mots que l'on distingue malgré son expurgation et que nous soulignons dans notre transcription: «A segũda he de agoa muy proueytosa aas bestas, e das bestas e enganadas molheres muy cobiçada e frequẽtada»". No final do verso da última folha surge o cólofon: «Conimbrie apud cœnobium diuæ Crucis. Anno domini . M . D. XLI.» 

Seguidamente procede-se à transcrição integral do opúsculo, com atualização de grafia. As epígrafes marginais do original foram transformadas em subtítulos, entre parênteses retos.

A «Descrição» retrata, com apreciável fidelidade (20), apesar de ter sido escrita em Lisboa, com recurso apenas à memória do seu autor, o estado da Igreja e do Convento em 1540, já após ter sido retirado o Convento das Donas, que ocupara o espaço à direita da Igreja, estando esse espaço, bem como o do lado esquerdo, preenchido com as salas de aulas (os "gerais") do Mosteiro e de algumas disciplinas da Universidade (os designados por Colégios de Santo Agostinho e de São João Batista). Em 1544, com a transferência de todas as aulas da Universidade para os Paços Reais, apenas se reservaram nesses dois espaços salas (com destaque para o "geral de Santa Catarina") para os atos grandes de graduação em Mestre e Doutor (presididos pelo Prior Geral de Santa Cruz, por inerência Cancelário da Universidade), procedendo-se a reorganização dos espaços, passando a Igreja (paroquial) de São João de Santa Cruz para o lado sul (atualmente Café de Santa Cruz), e a entrada principal para o lado norte (com o Claustro da Portaria onde fora o Convento das Donas, atualmente Câmara Municipal) (21).

A edição é completada pelos seguintes anexos:

No primeiro, reproduzem-se os capítulos XXII e XXIII do Livro VII da Parte II da «Crónica da Ordem dos Cónegos Regrantes do Patriarca Santo Agostinho» (Lisboa, Oficina de João da Costa, 1668), onde D. Nicolau de Santa Maria alegadamente reproduziu a «Descrição» de D. Francisco de Mendanha, com pontuais anotações de alterações ocorridas entre 1540 e 1668, e o capítulo XXIV da mesma obra, onde o cronista crúzio descreve a nova Sacristia, feita em 1622-1624.

No segundo, insere-se o estudo de Sousa Viterbo, publicado em 1890 na revista «O Instituto», comparando a versão adulterada feita na «Crónica» com a versão original da «Descrição», entretanto descoberta. Esse estudo é enriquecido com anexo documental, com três cartas de Gregório Lourenço, vedor das obras do Mosteiro, duas para D. Manuel I (de 1518) e uma para D. João III (de 1522), três documentos deste último relativos a Diogo de Castilho e uma quitação de João de Ruão à Misericórdia de Coimbra. O responsável pela 2.ª edição (Imprensa da Universidade, 1914) do estudo de Sousa Viterbo aditou-lhe novos documentos, que igualmente se reproduzem.

O terceiro anexo contém a descrição do Mosteiro de Santa Cruz feita, cerca de 1598, por Frei Jerónimo Roman, transcrita e acompanhada de enquadramento histórico por Vergílio Correia, em 1930, nas páginas de «O Instituto».

No último anexo, reproduzem-se extratos de manuscritos de D. José de Cristo (D. José de Britiandos) e do cartorário D. Vicente, existentes na Biblioteca Pública Municipal do Porto, anteriormente divulgados por Joaquim Martins Teixeira de Carvalho e por Vergílio Correia, com dados importantes para o conhecimento da topografia do Mosteiro de Santa Cruz, onde se registam as principais modificações ocorridas relativamente à situação existente à data da escrita e edição da «Descrição».

Mário Araújo Torres.

 

Ler em

D. Francisco de Mendanha, DESCRIÇÃO E DEBUXO DO MOSTEIRO DE SANTA CRUZ DE COIMBRA (Coimbra, Mosteiro de Santa Cruz, 1541)

Recolha de textos e notas por Mário Araújo Torres.

Em Coimbra, pode ser adquirido na livraria "Lápis de Memórias". no Centro Comercial Atrium Solum. 

Mário Torres