A CDE DE COIMBRA E O PROBLEMA COLONIAL

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Documento lido por Orlando de Carvalho na sessão de 19 de outubro de 1969, no Teatro Avenida

 

A C.D.E. DE COIMBRA E O PROBLEMA COLONIAL

 

De entre os problemas que mais atormentam o Povo, destaca-se, pela sua infernal dimensão – no tesouro, nas consciências, nas vidas –, o problema da guerra e da política africana. O quanto ele pesa no orçamento nacional; o quanto ele pesa já em litros de sangue (europeu, africano – não interessa), em mortos, estropiados, expatriados, desaparecidos; o quanto ele pesa em consciências desfeitas, e não apenas pela angústia de se verem amarradas a soluções que intimamente condenam (quer lhes caiba servi-las no próprio campo de batalha, quer lhes caiba sofrê-las na consciência do País), como pela desdita de defenderem essas soluções por ignorância, por medo, por cupidez ou por ódio, a forma mais dramática de se estar morto por dentro, ainda quando se adiantam as maiores razões ou pretextos – essa cruel contabilidade de oito anos, num Povo que se cria naturalmente pacífico e historicamente portador de uma missão humanizante, é alguma coisa que se encontra estabelecida em tais termos que ninguém ousa, hoje em dia, contestá-la seriamente. Nisso, pelo menos, tem de haver algum acordo entre os adeptos e os adversários do regime: em que a realização de uma Pátria não é a miséria e a morte, em que a missão de uma Pátria não é destruir e destruir-se.

Mas se pelo menos nisso haverá algum acordo, como há-de havê-lo em relação a uma política que claramente eterniza este drama português (salvo colocando-nos no optimismo trans-histórico dos trezentos anos que previa o Prof. Oliveira Salazar …)? Indo ao revés da política mais franca, para a mentalidade do tempo, que se fizera na República, o regime situou-se, com o seu colonialismo tacanho, nas condições mais propícias ao começo da tragédia que nos ensombra desde 1961. E se a sua ausência de compreensão e de tacto (já não falando de autêntico sentido do humano) sempre seria merecedora de condenação em termos políticos, que dizer, oito anos passados, da perseverança do regime numa linha de rumo que só teria alguma lógica para uma questão de poucos meses: a teoria do “caso de polícia” a que se pretende reduzir o nosso drama colonial? A teoria do “caso de polícia” supõe uma suficiente marginalidade do conflito, ou uma suficiente provisoriedade do mesmo, para que possa ser rápida e eficazmente reabsorvida nas tarefas pacíficas a que se entregam as populações: supõe, no fundo, que estas aderem, na sua massa, à política do Governo – que a política do Governo é suficientemente estimulante para conter e vencer os episódicos tumultos. Ora sabemos que a reabsorção se não deu e que ninguém de boa-fé crê numa solução militar. Não se trata, por conseguinte, de um mero “caso de polícia”, mas de um problema que se liga à própria política do Governo, à sua incapacidade de atrair as populações dos territórios a um projecto civil de harmoniosa convivência.

Isto, porém, é o que o Governo recusa – esta contestação pelos factos de uma política colonial que, não só não consegue reabsorver o conflito, como continuamente provoca a sua mesma exasperação. Partindo de uma tese rigidamente integracionista, é-lhe desde logo impossível, por mais autonomias que prometa, não assentar numa hegemonia da metrópole (o que significa, nu-ma hegemonia do europeu) que irresistivelmente compromete a sua aceitação pelo africano e a seriedade dos esforços de promoção das populações. Fácil é ver, pelas estatísticas recentes, a irrisória proporção da escolaridade entre os negros e a mais que exígua frequência dos graus de ensino superior. Uma estatística da distribuição das profissões não seria menos expressiva de um desequilíbrio alarmante (mesmo atendendo a todas as forças de inércia), desequilíbrio que se nota mais acentuadamente ainda nas profissões militares e nas funções de administração. Desta maneira, o ressentimento das massas não pode vir a diluir-se e, com ele, a diluir-se o sentimento de injustiça que está na base dos conflitos subsistentes. Porém, acresce que a política de integração – estabelecida como um dogma pelo Governo de Lisboa – só consegue manter-se com duas fortes transigências que ainda mais contribuem para o seu carácter impopular (ao mesmo tempo que a esvaziam de sentido, retirando-lhe totalmente os seus pretextos ideológicos): a invasão de capitais estrangeiros, imposta pela urgência de um certo “milagre económico”, e a mão-comum diplomática com a África do Sul e a Rodésia, imposta por necessidades de defesa. A invasão de capitais estrangeiros, mais orientada para uma exploração lucrativa do que para uma autêntica promoção dos territórios, ao mesmo tempo que esvazia de qualquer vago crédito a política de integração como política de presença, constitui de per si um neo-colonialismo flagrante em que reservamos para nós o papel mais ingrato: o de agentes de polícia dos reais exploradores. Por sua vez, a colaboração com a Rodésia e com a África do Sul, numa estratégia defensiva da chamada “África branca”, desmascara definitivamente o tão proclamado anti-racismo: o velho mito da multirracial convivência, da nossa missão histórica de criadores de humanidade. Todo o poder de persuasão de uma política – e pior: todo o poder de sugestão de uma cultura – se transformam assim num lamentável flatus vocis.

E eis que caminhamos, com esta política de domínio, para a liquidação, a prazo mais ou menos curto, com mais ou menos sacrifícios de outras vidas e bens, de toda a adesão espontânea a uma presença portuguesa. O que nos resta é a ocupação permanente, enquanto o consentir a complicada conjuntura. Depois, só nos resta o abandono sem proveito nem brio, no estilo do que se fez em São João Baptista de Ajudá e nas possessões da Península Hindustânica: sem salvaguarda dos interesses mais legítimos, designadamente dos interesses de uma presença cultural. O dilema presença-abandono, que os corifeus da política do regime tentam brandir contra os argumentos da Oposição, tem assim toda a força contra as teses do regime – que, essas, sim, nos conduzem irremediavelmente para aí (ainda que seja através da “África branca”, com que sonham alguns arautos da Cruz e do Império, pondo de parte esse Império e pondo de parte essa Cruz …).

Ora é contra isto que se indigna a consciência da Nação, e não apenas em nome do seu leal portuguesismo, como em nome, sobretudo, do seu sólido humanismo. Não pode crer-se que um problema tão grave para o País e para os valores do País (que são valores naturalmente do Homem, sob pena de o País ser uma monstruosidade moral) continue a iludir-se com uma política definida sem atenção pelo Povo e pelo humanismo do Povo. Um grande debate a toda a escala da Nação é, por conseguinte, condição número um para um projecto de solução do problema das Colónias – projecto que tem de tomar em linha de conta a experiência dolorosa de oito anos de guerra e as razões que permitiram o aparecimento do conflito: os Direitos do Homem que um paternalismo obsoleto sistematicamente negou ou sistematicamente ignorou. A cessação imediata da guerra, com reconhecimento imediato das correntes de opinião contestadoras da nossa própria soberania, transformando-as assim em forças vivas de um diálogo onde livremente se decidam as condições de convivência; o estabelecimento em comum, nesse clima pacífico, de uma autêntica planificação das necessidades dos povos e dos meios e ritmos de satisfação desses interesses (com largo esforço de ajuda económica e técnica, sem qualquer intrusão de um neo-colonialismo impertinente); a promoção efectiva dos direitos do indivíduo (particularmente das grandes massas rurais, tão sistemática e duramente escravizadas), desde o direito à saúde, à educação e à cultura, aos direitos económicos, cívicos e políticos, que lhe permitam o gozo duma cidadania verdadeira; a luta contra o ódio racial e o revanchismo europeu, com abandono de qualquer tradição de predomínio e qualquer transigência com a segregação sul-africana – tudo (acrescente-se) honestamente dirigido a que a população dos territórios, sem discriminações ou dilacções, possa escolher e construir o seu presente e o seu futuro: eis um projecto de solução do problema que, sem prejuízo da Civilização e do Homem, dignifica realmente todo o Povo Português. E nem se diga que com os riscos inerentes a uma livre determinação ou escolha: porque nos riscos aceites dessa própria liberdade é que está a grandeza da emancipação que se pratica (e a nobreza dos vínculos que espontaneamente se gerem, da presença de paz que frutuosamente continue).

Não ignoramos as dificuldades do projecto depois de um período de guerra tão longo, de uma excitação tão contínua dos preconceitos raciais, de uma mobilização tão sistemática dos mais recônditos instintos. A população de origem europeia não tem sido educada para o abandono dos privilégios e para a defesa, portanto, dos seus interesses mais legítimos: do seu interesse a coexistir em harmonia numa sociedade de todos e regida por todos. A psicose do “tudo ou nada” domina a psicologia dos brancos, preparando um futuro apocalíptico para qualquer modificação das condições. Ao mesmo tempo acicatam-se as desinteligências entre os partidos e as tribos, permitindo o desenvolvimento de controvérsias intestinas que não ajudam os esforços das lideranças mais propícias a uma solução harmoniosa do conflito. Há que contar com todo esse handicap, com todos esses ressentimentos e tensões – mas que seguir, apesar disso e com tudo isso, para a frente, com honestidade, autoridade e lealdade sem tréguas. A democratização de toda a vida política, com a necessária democratização económica, deve ser o motor da actuação dos responsáveis: sem o preconceito ou o resíduo imperial de que há populações que não têm maturidade para isso, que só a terão, porventura, dentro de longos anos, de que a tutela subsiste por mais ou menos longo tempo. Não fique dúvida de que o reconhecimento dos direitos de participação e decisão das populações dos territórios – e das correntes de opinião que as exprimem – tem de ser imediato e com efeitos imediatos. A Democracia só se realiza vivendo-a, o que não impede o desejo de que as correntes de opinião que mais se esforçam por uma Democracia efectiva venham realmente a alcançar a prevalência que merecem. É ao instinto do Povo Africano – e das correntes políticas que honestamente o informam – que se remete, no fundo, o resultado desta empresa. Com a firme esperança de que a experiência, nem sempre feliz, de certos povos vizinhos não deixará de influir no seu realismo político e de prevenir consequências possivelmente indesejáveis; e de que a nossa obrigação de uma defesa consciente, nos acordos que se vierem a fazer, dos interesses legítimos das minorias europeias (interesses que nada têm com posições de privilégio, a destruir o mais rápida e radicalmente que se puder) virá a ser compreendida e assumida pelo Povo como um caminho de paz e um caminho de progresso. Tal como a defesa, se possível, de valores de cultura, de frutuosas e honestas relações económicas, de colaboração, se possível, em todos os campos e sectores.

É esta linha de uma presença espontânea, que se prolongue e fortaleça progressivamente no futuro, cicatrizando muitas e muitas feridas, que constitui a proposta da Democracia Portuguesa. Não cremos que, sem patente má-fé, venha a apodar-se de política de entreguismo, de política movida por uma ideia de abandono. E se a polémica ou a retórica do regime está tão confiante na superioridade da sua, que se devolva sem reservas ao veredicto do Povo – não numa consulta, como esta, continuamente drogada por meros slogans deliberadamente escolhidos e continuamente sujeita, pelo que toca à oposição, a uma mesa censória sem qualquer sombra de civismo. Dizer que ao Povo compete pronunciar-se quando se evita, a todo o transe, a sua informação conveniente, é, salvo o devido respeito, troçar do voto do Povo – é querer o voto do Povo descerebrando esse Povo, reduzindo-o a um joguete de uma demagogia sem escrúpulos. Nenhum valor pode ter, por consequência, um tal voto – nenhum valor de confiança a uma política que o nega!

OS CANDIDATOS

ANTÓNIO ARNAUT

ANTÓNIO CAMPOS

HENRIQUE DE BARROS

MÁRIO TORRES

ORLANDO DE CARVALHO

RUI CLÍMACO

In Mário Torres