Cartas de amor: aflições de quem as tem

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Capítulo VII

 

            Pela insistência do toque da campainha e do chamamento, percebia que Deolinda não desistiria facilmente. Não lhe apetecia falar com a amiga, pois sabia muito bem o que ela queria. Estranhava-se. Até há pouco tempo deliciava-se com as coscuvilhices sobre a vida alheia. Hoje, no entanto, aquilo apenas a entediava. Provavelmente por se saber alvo dos mais recentes ditos e mexericos. Contrariada, foi abrir a porta à amiga. Escadas acima, Deolinda não se calava, perguntando onde andava metida, a fazer o quê, com quem, sem, no entanto, dar sequer tempo a uma resposta. Melhor assim. E, afinal, como constataria rapidamente, Deolinda não viera inquirir sobre o que todos já sabiam, mas sim contar.

            - Fizeste uma bela bela escolha, amiga. O Dionísio é um homem culto, com algo de seu e discreto. Sobretudo discreto. Já o malandro do Africano … meter uma mulher daquelas dentro de casa! É preciso ter descaramento! Bonita, é certo. E nova. Mas com ar de rameira! Decote até ao umbigo, saia curta, toda pintada! Tu sabes que eu não sou de falsas moralidades, mas, em público, há que ter um certo recato. Até para o Africano – ele não há fumo sem fogo e vá-se lá saber as aleivosias que cometeu em África! – aquilo é demais! Então o homem não há de ter vergonha de sair à rua acompanhado por uma mulher daquelas?!

            E o resto da tarde foi passado entre chazinhos, bolinhos e alcovitices a que Donzília se prestou, numa tranquila representação teatral de fazer inveja ao mais premiado ator.

            Quando Deolinda saiu, depois de todo o veneno destilado – sim, a inveja era pecado que não lhe passara à porta sem se apear -, Donzília quase explodia. A farpa aguilhoante do ciúme enterrava-se-lhe cada vez mais na alma, retorcia-se com requintes de malvadez, sangrava-a sem piedade. Mas, então, Inácio não a desiludira? Não tinha sido ele o autor das malfadadas cartas que tantos constrangimentos lhe tinham trazido? Não lhe dissera o homem, no final da manhã em que descobrira tudo, no largo da igreja, que estava perdidamente apaixonado por ela, mas decidira renunciar a essa paixão, porque mulher dele tinha de ser séria na rua? (as imagens sugeridas por aquele “na rua” dito ao ouvido, em voz rouca, faziam-na engolir em seco e tremer de volúpia) Porque haveria ela de continuar a pensar nele e importar-se com o facto de ele ter uma mulher em casa? Bem – tentava convencer-se-, a verdade é que Inácio praticamente lhe tinha chamado galdéria e, agora, metia uma dessas em casa! Só podia ser esse o motivo do seu incómodo, claro. Aliás, havia que tirar satisfações, confrontar o maganão com tal despropósito.

Durante toda a noite magicou em forma de abordar a casa dele, sem dar a entender que sabia o que se passava e que tal a atormentava daquela maneira. Radiante por

ter encontrado o pretexto perfeito – segundo ela – para voltar a ver Inácio, apresentou-se ao portão de ferro, manhã cedo, com a caixa de papelão na mão. Dentro, as cartas de amor que ele lhe enviara.

Nem precisou de usar a aldraba. Inácio saía, precisamente naquele momento, do portão, no encalço de um decote até ao umbigo, uma saia curta e uma maquilhagem cerrada. Deolinda acertara: um ar de rameira!

De repente, todo o peso da educação, das experiências passadas, da maledicência dos acontecimentos dos últimos tempos lhe caiu sobre os ombros. A vergonha fê-la empalidecer e virou costas a Inácio, deixando-o embasbacado, sem reação. Aquele lugar parecia embruxado. Era a segunda vez que dali saía de forma abrupta. Correu, ligeira, para casa, decidida a ali se enterrar, não permitindo que ninguém voltasse a olhá-la de soslaio ou lhe gritasse, em surdina, a sua desfaçatez. Sim, porque dirigir-se a casa de um homem que nela mantém outra mulher é um ato indecoroso, obviamente. E Dionísio? Por que não se deixou embalar naquele enleio? Era um homem simpático, educado, culto e romântico. A vida com ele vinha a revelar-se tranquila e prazenteira e adivinhava-se um ainda possível projeto de vida em comum. Mas por que é que a imagem do Africano a atormentava daquela maneira? Por que é que a lembrança do toque da mão dele no seu braço ainda lhe queimava a pele?

Perdida nestes pensamentos, as pancadas fortes na porta do prédio soaram-lhe como trovões no Apocalipse. Única habitante do prédio há meia dúzia de anos – o casal que habitara o r/c durante mais de três décadas desaparecera, um dia, misteriosamente, dando azo a todo o tipo de especulações, na vizinhança e arredores -, Donzília abriu a porta com receio. No umbral, perfilava-se a figura de Inácio. De ar solene e decidido, viera, certamente, dizer-lhe poucas e boas. Pois que fosse! Donzília afastou-se da porta e, com um gesto, convidou o homem para entrar.

 

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